quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Gênesis


Fora acordado por um colega que pouco via, pois diferente dele, este lidava com o outro extremo, com o início da Vida. Ele considerava uma especialidade alegre, não estava acostumado a esse tipo de reação dos pacientes, esse movimento ilógico e sobrenatural que é a geração de um ser dentro de outro. Patinava pelo corredor parcialmente escuro devido ao adiantado da madrugada seguindo o colega Obstetra que o enchia de informações codificadas sobre a paciente, o pai, a anestesia, o pré-natal e o desfalque da equipe, motivo principal de ter sido tirado de mais um desconfortável pestanejar na primeira maca da emergência.
            Mal teve tempo de se lavar, quanto mais calçar as luvas. Chegou no ápice de uma contração e vislumbrou a teatral cena apocalíptica, caótica, prolixa e absolutamente bela comum a qualquer parto vaginal. O Obstetra dirige, sentado em um banquinho de três pernas, guiando o bebê pelo seu trajeto obscuro; outra Obstetra pressionando a barriga por cima, sendo o ponto para que a parturiente não esquecesse seu papel de respirar e fazer força da maneira correta na mesa; o Pediatra aguardando sua vez na coxia, agarrando-se a um pano verde para aquecê-lo e posteriormente secar a criança; duas Enfermeiras dando suporte técnico para as pernas exaustas por estarem em posição deveras desconfortável; o Anestesista assegurando pelo acesso venoso o refrigério parcial da parturiente; a Mãe, atriz central da trama, aclamada e rodeada por todos que tentavam motivá-la a continuar; e finalmente o Pai.
            Enquanto assegurava o lugar de uma das Enfermeiras, atracando-se à perna da parturiente, o Doutor pôs-se a observar a figura do Pai, seu personagem favorito do balé da sala de parto. Um mero coadjuvante em meio a tanto tumulto, a aflição e impotência estampados no rosto suado e cansado.  De tempos em tempos, enquanto fazia força e sofria as dores da esposa, como todos os outros, buscava pela máquina fotográfica no bolso do pijama cirúrgico, querendo registrar o momento em que sua vida mudaria completamente: o nascimento do primeiro filho. O Pai confuso com tantos nomes e gritos e ordens para sua esposa, de pé, ao lado da cabeceira, mãos trêmulas segurando a máquina. A informação de complicações circulava à boca pequeníssima em meio a equipe técnica do espetáculo e os olhares dos Médicos se encontravam rapidamente em cumplicidade, para cada um ter certeza do que deveria fazer.
            À beira da exaustão, a Mãe já não sabia mais a que familiar ou santo recorrer dentre os monólogos sofrido de dor e força. Estava cumprindo primorosamente seu papel de guerreira e mulher determinada há horas, horas demais na sua concepção. O apoio veio da forma mais adequado possível. O Pai, em uma epifania do real significado de ser Homem e Marido agarra a mão da Esposa, lhe beija a testa e diz que a ama, o quanto estava orgulhoso dela e como estava sendo corajosa naquele momento.
            O tempo parou por um ou dois segundos talvez, dando licença para o carinho daquele casal, para um momento de vislumbre de pupilas dilatadas de dois amantes que estavam prestes a segurar o resultado palpável, frágil e rosado de seu casamento. E ali, sem capote, sem luvas, afastando a perna parcialmente anestesiada do caminho, ele, Médico formado, Doutor, sábio Doutor, compartilhou uma lágrima absorvida pela máscara cirúrgica que escondia o sorriso mais franco que sorrira desde sua formatura. Ali suspirou fundo e sentiu uma bruma leve de felicidade e realização pela profissão que escolhera, sentimento raríssimo durante a vida acadêmica e noites insones. Um espirro forte e súbito de sangue mancha-lhe a lente do óculos, rosto, máscara e pijama cirúrgico, esbofeteando-o para fora de seu enlevo profissional. Um ruído agudo e doce corta o ar matinal da enfermaria.
            O bebê nascera.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Amigo

          Sentado no banco do ônibus, observada a cidade passar com a brisa rompendo narinas adentro sem pudor algum, trazendo com elas os gases tóxicos emanados dos escapamentos dos carros e chaminés que rodeavam a cidade. Quem ligava? A cidade tinha árvores suficientes para que o povo esquecesse que seus pulmões eram castigados desde a primeira inspiração dada no mundo. O Doutor tinha certeza de que ele era o único ser (humano, pelo menos) que parava para pensar no acúmulo de partículas negras se instalando preguiçosas nos fundos dos imaculados alvéolos pulmonares de crianças que brincam inocentes na pracinha.
            A cidade acordava preguiçosa em alguns rostos que subiam no coletivo, ainda esfregando os olhos. Alguns adolescentes que certamente tinham planos muito melhores na tarde anterior completavam deveres de casa às pressas, apoiando os cadernos nas mochilas assinadas por colegas. Mães puxavam seus filhos sonolentos pela calçada. Pessoas passeavam com cachorros. Uma manhã qualquer, sol encoberto, temperatura amena para o fim do ano, ligeiramente silenciosa para o horário... O homem que estava a sua frente dá uma cusparada para fora da janela, no momento em que um motociclista está costurando o trânsito, por sorte com o capacete.
            A já antiga notícia de jornal parece lhe esbofetear a cara mais uma vez. Um rapaz teria se envolvido em um fatal acidente de trânsito numa madrugada. Aparentemente perdera a direção da motocicleta, deixando uma marca vermelha de tinta na lataria de uma Kombi que vinha na direção contrária. Aparentemente teria desviado de um carro, cujo motorista estava bêbado. Foi uma nota pequena dentre as outras atrocidades noticiadas diariamente, entretanto, de suma particularidade.

            Seu Amigo, provavelmente o melhor Amigo que já fizera nos anos de estudo da faculdade, tinha conseguido arranjar um bico em um plantão de cirurgia geral durante o internato, no mesmo dia que ele, sexta-feira. Viam-se ritualisticamente nas manhãs seguintes ao plantão para rir, rememorar, trocar diagnósticos, falar sobre música, carros, viagens, mulheres... Sobre estas falavam desde os tempos das aulas de anatomia, quando ficavam de olho nas calouras da bancada 7 assistindo à aula de membro superior. Fora a primeira pessoa com quem falara na faculdade, durante o trote. Ambos com os cabelos cortados de forma aleatória, pintados de azul verde vermelho amarelo dos pés a cabeça, o nome da faculdade marcado na testa. Coletaram mais trocados do que qualquer um na turma e foram eleitos os calouros revelação da choppada do ano. O Amigo acompanhou os tempos difíceis da vida do presente Doutor, as duas provas finais, de farmacologia e sistema urinário, que teve que fazer; a mudança da Mãe; a despedida do Velho. O Doutor também acompanhou o Amigo por poucas e boas; brigas com as eternas namoradas; ajudou nas parcelas do pagamento da moto nova; estava presente durante os porres na madrugada. Eram os irmãos que ambos nunca tiveram. Fizeram viagens inesquecíveis. Sentiam-se apoiados um no outro, podendo sempre contar com a mão, apoio, jaleco, esteto, caderno, resumos um do outro. Dividiam perdas e provações, sonhos e conquistas. Um carinho fraterno que nunca tivera oportunidade de experimentar. Certo sábado, seu amigo não aparecera para o encontro matinal.

            A notícia de jornal apertava-lhe mais o coração. A fotografia mostrava a motocicleta vermelha contorcida, quase irreconhecível. A Kombi também já tinha visto dias melhores. No chão, espalhados pelo asfalto, estavam algumas apostilas e anotações. A nitidez da imagem permitia identificar um adesivo na lataria da motocicleta mostrando o caduceu, adornado com as iniciais da faculdade. A ambulância chegara tarde demais. Dois meses depois o Doutor recebia seu diploma. O nome concedido à turma foi uma homenagem sugerida por ele. Era o mínimo que poderia fazer. Mas nunca o suficiente.
            O ônibus era o único transporte que conseguia utilizar desde então.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Espera


          Aproveitou o breve momento em casa para pendurar a cortina nova. O motivo um tanto infantil da cortina, adornada de peixinhos coloridos, patos de borracha e bolhas de sabão fora escolhido a dedo. Não agüentava mais cores pastéis dos hospitais: beges, verdes bebê, azuis lavanda... Até os campos cirúrgicos eram verdes, dependendo da verba empregada no equipamento do centro cirúrgico, azuis descartáveis. Algumas enfermeiras buscavam uma forma de neutralizar o já tão neutro ambiente, principalmente as do hospital pediátrico. Usavam toucas coloridas, aventais com bordados de personagens de desenhos animados... Inclusive, a cortina se assemelhava muito a uma touca que já tinha visto rodar pelo CTI Neonatal.
            O banho breve seguiu-se de uma rápida dúvida sobre fazer ou não a barba. Decidiu-se por tê-la esquecido e procurou qualquer camisa passada que estivesse no armário. Não se lembrava da última vez que comprara roupas para si ou para qualquer outra pessoa. Sentou-se na beira da cama feita, saudosa de seu dono para calçar os sapatos, buscou pela pasta, adicionou uma muda de camisa, pegou o pijama cirúrgico para o plantão da noite, o esteto, duas apostilas do curso para terminar os capítulos para a grande prova e saiu. Goodman o viu voltar afobado, logo após ter batido a porta, passando a mão pelos cabelos, agarrando a carteira que tinha deixado displicentemente sobre a mesinha, metê-la no bolso e bater novamente a porta. Para o peixe restavam algumas migalhas de pão boiando na água do aquário.
            Encostado no poste na rua, aguardava o ônibus que o levaria a terminal ferroviária da cidade. Rotineiramente encostava-se ao mesmo poste. Com a cabeça cambaleando ainda de sono, os olhos ainda numa bruma, como se fosse um recém nato que acabara de sair das entranhas da mãe para o claro e frio ambiente da sala de parto era ele ao sair da cama. O enlameado dos olhos pelo menos o permitia distinguir a figurinha esquálida e já muito conhecida que vinha arrastando seu carrinho de compras de lona verde e branco, geralmente vazio. O mesmo senhor lhe fazia todos os dias a mesma indagação, como se nunca o tivesse visto antes em sua vida. O mesmo chapéu cor de berinjela, meio caído sobre um olho, tapando-lhe a calva cultivada por anos de existência. Os óculos de lentes grossas e esverdeadas nas bordas pelo uso fitavam-lhe toda a santa e enevoada manhã, escondendo-lhe os olhos adornados pelo característico halo leitoso de catarata: “É ruim esperar, não é?”
            As palavras lhe martelavam a mente e o peito, fazendo-o sentir uma pressão na caixa torácica que não sentia por qualquer motivo. Mas tais palavras eram pesadas de uma forma inexplicável e toda vez que eram pronunciadas por aqueles lábios outrora vívidos parecia-lhe que o tempo parava para que o Doutor pudesse reaprender a respirar. De quê sabia aquele senhor? Como poderia saber? E o que esperava tanto...? Nem o próprio Doutor sabia dizer ou esconder. Sabia somente que o tal senhor encurvado parecia transpor toda a sua mente, fitando-lhe como se tivesse um aparelho de ressonância magnética acoplado aos óculos, vendo-o por completo. Engolia em seco, concordava com a cabeça, mesmo sem saber pelo que esperava tanto e mirava as rachaduras do chão novamente. O senhor ia embora mais uma vez, mas a dúvida permanecia em seus ouvidos, martelando-os, pesando-lhe o ar, como se esse agora fosse denso, quase palpável. “É ruim esperar...”

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Adendo

            Não era sempre que fatos da vida o emocionavam. Porém, diferente do raciocínio lógico da maioria das pessoas, ele não era calculista, frio e sem coração. Ele era Médico. Seu papel era cuidar, confortar, tratar e não ser tratado, confortado, cuidado. Aprendera na faculdade a aceitar sua condição desde as primeiras aulas de fisiopatologia no segundo ano, onde eram mostradas as imagens de muitos pacientes agonizantes, em fase terminal, vísceras expostas, pés diabéticos, gripes, pulmões congestos, corações infartados. Figuras muitas vezes chocantes para as jovens retinas imaculadas dos acadêmicos que eram severamente repreendidos pelos brilhantes mestres, cada vez que ameaçavam fazer alguma careta de asco ou pena. “Ora, vocês não são Doutores?”
            Chegando no hospital as imagens nem se faziam notar praticamente. A diferença é que eram acompanhadas de sons, cheiros, texturas e, o pior de tudo, eram acompanhadas de pessoas reais. Doentes. Reabilitados. Pais e mães. Idosos. Bebês. Jovens. Planos. Futuros. Sonhos. Vidas, afinal de contas. A diferença é que as imagens, os corpos doentes, eram acompanhadas agora de almas. E isso era algo que tinham que aprender a lidar, de qualquer maneira. “Afinal, vocês não são Doutores?”
            Dessa forma, não era sempre que os fatos da Vida o emocionavam. Não porque não os sentisse, mas porque os suprimia, os controlava. Houve momentos em que umidecia a barra da manga do jaleco num movimento rápido para afastar as lágrimas ao observar um paciente seu, revendo mentalmente todo o prognóstico desfavorável, todas as reações químicas que aconteceriam, enquanto o corpo definha e se prepara para morrer. Uma conseqüência absolutamente natural da Vida, ele reconhecia. Afinal, para morrer, basta-se viver. E os tantos pacientes que lhe puxavam o tapete eram justamente aqueles que entendiam perfeitamente tal frase de efeito e se deixavam partir como se concluíssem a mais incrível e difícil das jornadas: placidamente, acalmando a si, aos familiares e ao Doutor, sábio Doutor, que no fim do dia, sentado na lavanderia ou num meio de transporte público, assoava de leve o nariz e respirava fundo, com a mesma sensação do dever cumprido.
            Mas eram raros os que faziam bonito. Lugar comum era compreender a situação como inevitável, mas não como uma linha de chegada. Simplesmente como um ponto final de um monólogo por demais longo e solitário. Havia os que partiam sozinhos, os que partiam amargurados, os que partiam culpados, os que partiam com medo, os que partiam despreparados para partir. Sempre haverá. Estes não provocavam tristeza, tão pouco comoção. O sentimento era um concordar que seu trabalho havia sido feito e admitir que a partir desse limite, sua profissão de nada mais servia. 
           Não era uma pessoa fria. Era Médico.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sonhos


Com um livro de Anatomia, um de Fisiologia, um de Medicina Interna, um caderno xerocado de um aluno que provavelmente não estava estudando na madrugada anterior à prova e uma xícara de café sobre a mesa tentava assimilar o máximo de informação possível. Anotava compulsivamente as informações tiradas dos livros lidos concomitantemente e, pelo adiantado da hora, inutilmente.
O café amargo descia arranhando a garganta, perfurando o estômago e chacoalhando os neurotransmissores já enfastiados pela semana de provas do último bimestre. Mas estava tudo ainda começando... Mal sabia ele o que estava por vir, nomes impronunciáveis de criaturas microscópicas cujo mal que causavam, outrora destruíram nações. Todas compiladas e catalogadas, nem todas memorizadas pelos seus veteranos e pouquíssimas identificadas corretamente na prova prática. O frio nas entranhas começava outra vez, fazendo o lápis correr mais rápido pelas páginas do caderno.
Uma voz grave murmurava ao seu lado, folheando um dos livros sebentos alugados na biblioteca semanas antes, mas que a vergonha o fizera abrir somente algumas horas atrás. “Fístula traqueoesofágica... eca... Epistaxe... Fenda palatina, ah coitado.... Como faz a manobra de Valsava???” Um entusiasta, um curioso, querendo saber de tudo e sobre tudo o que estudava. “Vou tirar meu CRM junto com você, você vai ver!” E continuava a murmurar, acompanhando mais uma vez outra madrugada insone que produzia uma corcova característica, identificável até o fim da vida. O cheiro das folhas revistadas de alguma forma parecia se entranhar nos seios paranasais e se aninhar em suas papilas gustativas. Era como lamber os livros tentando estudar. Talvez fosse o mais prático a se fazer.
Em meio aos renomados pesquisadores e seu colega de caderno impecável, as horas se passavam enevoadas, seguidas de baldes e baldes de café e bolo, trazidos pelo entusiasta. A semelhança era inegável, o mesmo perfil esguio, mesmos olhos merejados cor de amêndoa, mesmo início de barba... Os óculos pendidos quase que patologicamente na ponta do nariz, devido à pose de olhos grudados nas letras e figuras anatômicas que pareciam bailar diante de si. A voz ia se tornando cada vez mais e mais grave... E que diabos eram aqueles violinos tocando àquela hora?!? O potencial Doutor pestanejava, acordando assustado devido a uma sialorréia importante pendente da maxila entreaberta. Ou, como gostava de dizer, babava copiosamente sobre o caderno.
Violinos tocavam cada vez mais alto, insistentes. Olhara ao redor e nada mais reconhecia. Aquelas figuras já tatuadas nos giros cerebrais se confundiam, chocando-se com transmissores de catecolaminas por dentre os neurônios saturados. O gosto de cabo-de-guarda-chuva em sua boca era sofrível misturado às cigarras e violinos que competiam entre si para estabelecer qual dos dois promoveria sua cefaléia matinal. O companheiro não mais insone encontrava-se como morto, espichado no sofá fazendo o livro de Clínica Médica de cobertor por sobre o tórax que se elevava com dificuldade. Levantou-se e foi até a figura, buscando levá-lo para um dormitório mais confortável.
Qual foi sua surpresa ao ver, dentre os chiados ao redor e a bruma do sono e o turbilhão de informações anatomofisiohistopatológicas, cafeinérgicas e adrenérgicas que a figura que o acompanhava naquela madrugada do início da faculdade era ele mesmo, tranqüilo, meditando inconsciente sobre os destinos da nacionalidade. A onda de choque o sublimou da saleta do apartamento, arrebatando-o ao som dos violinos, largando-o logo em seguida sobre o que seria o mesmo sofá, doravante os puídos do tempo passado, na mesma posição, não obstante a troca do livro por uma apostila do Curso preparatório para a residência.
O vizinho do bloco em frente ouvia a rádio clássica numa altura suficientemente potente para atravessar a rua pouco movimentada àquela hora da manhã e penetrar em seus ouvidos atordoados pelo sonho do qual havia sido arrancado pelo seu subconsciente. Este velho amigo nunca o deixava concluir o raciocínio ilógico dos sonhos, talvez o protegendo de si mesmo. Levantou-se, esfregando os olhos, devolvendo os óculos ao local de origem e passou os dedos longos suave e carinhosamente pela borda do porta-retratos na mesinha de centro customizada. Seu velho companheiro de estudos retratado numa captura do tempo de anos pretéritos ao lado de uma Mãe muito moça e um bebê que não sabia como era bom o tempo em que nada mais o preocupava, senão a hora da janta ou as fraldas a descartar.
Suspirou fundo, levantando-se para as abluções matutinas, deixando para trás as lembranças do Velho, seu Velho, no qual ia se transformando pausada e orgulhosamente.

domingo, 21 de novembro de 2010

Samambaias, Goodman e cactos


Arrastando-se pra casa pela calçada molhada pelo sereno, passa pela frente da farmácia. O letreiro pisca compulsivamente, todas as horas do dia, todos os dias do ano desde que se lembrava dele. O dono da farmácia o vira nascer, crescer e, finalmente, receber o direito para receitar os tantos medicamentos que vendia. Desde que aprendera a andar sozinho pela rua do bairro residencial, tinha o hábito de entrar farmácia adentro, cumprimentando o dono com um rápido aceno e subir na balança. Hábito este que não havia sido esquecido, como o de andar ziguezagueando pelos canteiros ou o de evitar as reentrâncias do chão ou o de pisar somente nas marcas brancas da faixa de pedestre. Todos os dias, não importando a hora, entrava na farmácia, acenava seu cumprimento de costume, conferia os números e ia embora, como quem olha para o relógio e, na verdade, nem sequer repara nos ponteiros.
            O ponteiro da balança antiga girava, enferrujada, entre a mesma faixa, um pouco abaixo do peso adequado, mas nada fora da normalidade. Não se preocupava com o peso. Ou a falta dele. Tanto que nem se dava ao trabalho de pendurar a pasta, mochila, casaco, jaleco e todas as outras pendengas que sua vida nômade de hospital em hospital o fazia carregar. Havia uma sensação de familiaridade, o subir na balança. Eram como velhos amigos de infância se encontrando antes e depois de um longo dia de trabalho. Durante a noite não havia iluminação em parte da farmácia e somente uma das portas de correr ficava aberta para os glutões necessitados de anti-ácidos, bêbados procurando analgésicos para o dia seguinte, namorados cuidadosos, pais e maridos solidários aos períodos mensais odiados pelas mulheres da casa e ele.
            Morava sozinho no apartamento alugado de seus pais desde que a Mãe se mudara para a casa da irmã solteirona numa cidadezinha praiana não muito distante. Abriu a geladeira e pegou com uma felicidade cansada o pote de sopa de macarrão da Mãe, que trouxera da última vez que as visitou. Certificou-se de que ainda estava em bom estado geral com uma breve ectoscopia e derrubou o líquido ainda não totalmente descongelado em uma panela vermelha, presente do Pai para a Mãe na época do casamento.
            Largou-se no sofá velho em frente à televisão, deixando que as mialgias intensas se diluíssem com o calor da sopa quente e reconfortante, que ia sorvendo a calmas colheradas enquanto observava às notícias com pouco interesse. Na mesa, ao lado da televisão, Goodman o acompanhava no ritual noturno, sonolento e faminto. De dentro do aquário antigo adornado por uma pedra de plástico e uns musgos que cresceram por falta de limpeza, o peixe dourado observava o Doutor coçar a cabeça atrás do pote de comida para peixes que comprara. Pelo visto, Goodman se alimentaria de pão mais uma vez.
            Revirava os armários da cozinha procurando a ração para peixes, desarrumando tudo o que a diarista havia aprumado na semana anterior. A moça só era contratada para ir semanalmente, mas às vezes aparecia no apartamento por pena do pobre Doutor. Morava sozinho com o peixe e ainda assim parecia que a casa era ocupada por um batalhão. Não que ela achasse o Doutor muito desordeiro. Ele era apenas Médico... Não tinha tempo nem para comprar as lâmpadas fluorescentes da cozinha. Se bem que a proximidade desta com a sala era tão grande que a luminosidade de uma servia para a outra e vice-versa.
            Não que a sala fosse muito pequena. Tinha um tamanho razoável para comportar o sofá; o móvel da televisão, que também servia de morada para Goodman; uma mesinha de centro feita por ele com uma tábua que sobrara no caminhão de mudanças e alguns livros inutilizados da época de colégio; uma estante que dividia o cômodo em sala e quarto de dormir; e livros. Muitos e muitos livros de Medicina e outros mais comprados no sebo, bem como revistas acadêmicas e outras que ganhara de brinde em congressos. Tudo muito bem organizado: espalhados pela sala, amontoados em cantos, sobre e debaixo da mesinha, na bancada da cozinha, ao lado da televisão, sob o aquário... Não jogava nenhum fora.
            Seres viventes oficiais na casa eram ele (ainda assim, variando com a hora do dia e estação do ano, parcialmente vivo), Goodman e um cactos no peitoril da janela. Os extra-oficiais incluíam o mofo, ácaros, aranhas e ocasionalmente algumas formigas que faziam morada pelo banheiro e cozinha. O Doutor já tivera o prazer da companhia de uma samambaia em casa. Pobrezinha não desfrutara o suficiente da companhia do venerável inqquilino do apartamento e secou aos poucos, pendurada na parede da sala. Já o cactos ao menos não se importava em ficar sozinho por longos períodos. Além do mais, mesmo que a solidão fosse tão grande ao pondo de fazê-lo se consumir de dentro para fora, sempre surgia um raminho juvenil por entre os espinhos antigos e eis que ressurgia com todo seu esplendor no peitoril da janela. Em determinados dias da semana o Doutor gostaria de que alguns de seus pacientes tivessem tal característica de Fênix e chacoalhassem fora suas mazelas.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Post-its, Meias e Prontuários


            Finalmente seu plantão havia chegado ao fim. O único problema é que não estava completamente acordado para curtir os 90 minutos que durava o seu percurso de trem até a outra ponta da cidade para começar mais uma jornada de 24 horas no hospital municipal. Recolheu suas poucas coisas do armário no vestiário reservado aos médicos e ia saindo quando a recepcionista Beth, a única pessoa nessa emergência  que parecia ter nome, o chamou, dali mesmo do balcão, sem a necessidade do tão usado microfone nos avisos e alertas: “Dr.! Dr.! Recado para o Sr.” Ainda de costas pensou em fingir que não ouviu e passar por aquelas portas sem interromper seu percurso. Respirou fundo e decidiu voltar.
            Não ficou surpreso. Afinal, quase ninguém o ligava mesmo. Seu celular já havia praticamente atrofiado o sistema elétrico responsável pela emissão de sons. Só o relógio funcionava. O post-it amarelo tinha o mesmo número que aparecia em todos os post-its amarelos que a sorridente Beth o entregava semanalmente desde que começara a trabalhar ali. Era de uma garota que o conheceu na última festa na qual foi: a sua própria formatura. Jamais retornou para aquele número e o recado tomou o destino de todos os outros anteriores: o cesto de lixo.

 
            A viagem de trem não lhe era estranha. Desde os tempos da faculdade a fazia incessantemente. Desde os tempos em que se sentia todo poderoso, carregando seus livros para um fim de semana cheio de estudos, acompanhado do famigerado contrabando de ossos, cujas menores e aparentemente insignificantes reentrâncias deveriam ser carinhosamente analisadas e memorizadas para que se obtenha uma prova prática tranqüila e, por que não, bem sucedida.
            Sentado em seu canto no fundo do vagão praticamente vazio, observava as pessoas humildes que eram dependentes daquele transporte durante o início da madrugada. O último trem era quase sempre o mesmo: o cheiro dos freios queimando os trilhos, o piscar das lâmpadas estremecidas pelos sobes e desces do caminho, o ranger das peças antigas e enferrujadas onde as pessoas se penduram para não cair. Os passageiros do último trem eram quase sempre os mesmos: rostos vazios, olhos cansados, colunas arqueadas, roupas amarrotadas e puídas. Havia de tudo ali. Enfermeiras, pedreiros, faxineiras. Dentistas, estudantes noturnos, manicures, vendedores ambulantes, policiais e ele. Médico formado, não há tanto tempo quanto gostaria ou quanto sua fisionomia solitária poderia parecer.
            Desceu na estação de costume, perto de uma lavanderia que ficava aberta 24h, todos os dias da semana, comandada por um Chinês que viera quando criança e até agora não sabia pronunciar a língua da sua nova terra natal propriamente. O interessante, no entanto, era que conseguia sustentar uma conversa longa e animada durante o tempo em que a roupa era lavada e seca e, quanto mais tarde fosse, mais interessante a conversa parecia ficar. Eram seus locais mais frequentados, as lojas 24h. Antes, aparecia assiduamente em bares e restaurantes noite adentro, com a galera, com a família, com alguém que lhe parecesse especial na época. Agora dava o ar da graça em lojas de conveniências, supermercados e na lavanderia do Chinês, mais por necessidade de horários do que por afetividade local, mesmo que fosse extremamente reconfortante jogar o saco de pano de roupa suja que trazia de duas em duas semanas na máquina de lavar, sentar em uma cadeira de ferro dobrável e assistir comodamente ao rodar das roupas que se tornavam vagarosamente brancas mais uma vez. De alguma forma o permitia pensar e elocubrar sobre tratamentos possíveis, diagnósticos diferenciais e que nova cor poderia ser para a cortina do banheiro, para que não se assemelhasse ao hospital.
            Munido de alguns trocados, realizou o costumeiro ritual de lavagem. A vantagem da sua profissão era que não precisava sempre separar em duas máquinas o branco do colorido, lembrando sempre que as poucas camisas coloridas que tinha eram tão claras de usada que lavava todas juntas sem se preocupar. O Chinês também tinha uma fórmula secreta que mantinha o branco tão branco quanto a farda de alguma alta patente da Marinha. Realmente, algo a se orgulhar. Mas não se orgulhava. Não muito.
            Ao remexer seus bolsos à procura de alguma altamente necessária e esquecida quantidade de dinheiro, ateve a mão em algo no bolso de trás da segunda calça que tinha além da que estava vestido. O toque do papel na ponta dos dedos o fez estremecer, pois esperava o frio de uma moeda. Ao ver o já conhecido número de telefone da tão insistente garota, escrito pela carinhosa Beth no post-it amarelo e guardado displicentemente no bolso não se surpreendeu nem se alegrou. Simplesmente concluiu sua tarefa, atirou o papel no cesto de lixo e sentou para o entretenimento. Desviou o olhar para o Gato gordo, preto e branco que dormia profundamente encostado em uma secadora, aproveitando o calor da máquina e embalado pelo Chinês que murmurava uma canção da sua infância querida que os anos não trariam nunca mais. O letreiro néon da lavanderia 24h piscava azul e vermelho sem parar enquanto suas roupas rodavam diante dele, criando uma espécie de hipnose curiosa: camisa, cueca, meia, short, pacientes, hospital, meia, prontuário, camisa, telefone da garota, meia, cueca, diagnóstico, meia prontuário meia meia trabalho telefone camisa short cueca pacientes camisa telefone meia short... O torpor da madrugada tomou conta do seu corpo intensamente e somente a campainha da máquina o fez acordar, minutos depois, avisando que seu árduo trabalho havia terminado. 

 (Este texto foi composto com a participação de D. Leal)

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Capítulo I

Beta hidróxibutirato desidrogenase!

NÃO!!! Ele acordara assustado ao ouvir tal palavrão. A última vez que tinha se deparado com tamanho infortúnio foi na época das aulas de bioquímica, ainda na faculdade, quando era obrigado a decorar e repetir exaustivamente ciclos e cadeias intrincadas de substâncias de nomes tão feios quanto este. A única diferença é que nos seus sonhos o tal beta hidroxialgumacoisa era um monstro terrível, todo verde e com imensos chifres fluorescentes que o perseguia em uma estrada de carbonos e hidrogênios onde as encruzilhadas eram feitas de grupamentos amino.
Realmente nada daquilo fazia sentido. Verificou as horas no rádio relógio que repousava sobre o criado e já passava das quatro da madrugada. Talvez estivesse só tenso com o concurso de residência que prestaria daqui a uns dias, ou cansado com os plantões e noites perdidas em alguns hospitais da cidade. A verdade é que cansado estava mesmo da vida.
Levantou-se ainda no escuro. Antes de deixar o quarto tateou por alguns instantes a maca na qual repousava em busca de seus óculos e seu esteto. Empurrou enfim a porta e deixou a sala.
Nada nesse novo ambiente parecia com aquele cubículo escuro e vazio que acabara de deixar. A luz o chicoteava por completo, deixando claros os vincos e amassados do seu jaleco branco. Seus olhos claros eram, às vezes, resistentes à luminosidade, o que fazia com que tivesse os olhos semicerrados quase todo o tempo. Tudo isso somado ao seu cabelo “bed style” e a barba sempre por fazer conferiam ao dr. um ar desajeitado, porém minimamente sexy.
“Mandaram me chamar?” ele perguntou na recepção, que é de onde vinham todos os chamados e alertas. “Sim”, respondeu uma senhora gorda e negra de aspecto jovial que costumava trabalhar ali todos os dias, tirando os sábados porque era adventista, pelos últimos 22 anos.

O caso não era nada fora do comum, não parecia um bichão de sete cabeças comparável às cadeias infindáveis de carbono com as quais sonhava deitado na maca desconfortável e sem regulagem. Um menino franzino havia engolido acidentalmente um objeto que, somente após três leves tentativas de desobstruir suas vias aéreas, verificou-se ser, aparentemente, uma parte de um inofensivo enfeite de Natal. Por dois segundos passaram por sua cabeça as funcionalidades de todos os ciclos responsáveis pela manutenção da energia corporal e o que a falta de oxigênio faria a todas as estruturas, cujos nomes eram grandes demais para se escrever em uma linha do seu antigo caderno da faculdade, que, muitas vezes, resumia-se a uma folha roubada de alguma menina que se sentava na primeira fileira. Definitivamente, nada agradável.
Tal corrente de pensamentos, felizmente, durou pouco o suficiente para não perder o sono ou aumentar sua taxa já elevada de adrenalina no sangue, mas foi longa o bastante para fazer crescer talvez um ou dois fiapos grisalhos a mais nas proximidades das têmporas. Nada agradável? Talvez.
Beth dizia sempre orar por suas olheiras nos sábados em que ia para a igreja adventista. Fazia isso desde a segunda noite em que ele passou pelo plantão da pediatria, cobrindo um ou outro amigo que ainda foi capaz de preservar algum tipo de convívio social durante os anos da faculdade, quando de tão cansado dormira de pé, encostado entre dois gabinetes onde guardavam EPIs e luvas de procedimento. Com um sorriso sincero e levemente empático da sempre solícita Beth, arrastou-se de volta para o quartinho, como um lagarto retorna para sua toca escura. Como fruta podre, descarregou todo o peso do corpo torneado e levemente corcunda, resultado da má alimentação, deslocamento de hospital em hospital e longos períodos de estudo, na maca dura e desconfortável. Apagou como alguém em preparação anestésica para uma eplenectomia: rápido e inocentemente.


(Este texto foi composto com a participação de D. Leal)

Saudações

Inicialmente agradeço a visita, estou entrando neste mundo de modernidade e quero ver no que vai dar. Eu sempre quis escrever um livro, mas me parece que o blogg é algo mais fácil. A idéia é postar semanalmente, o que pode se tornar mensalmente, dependendo da época de provas e trabalhos em geral, mas.... vocês sabem como é, certo? Aliás, para quem não sabe, minha semana de provas começa amanhã e o que eu estou fazendo?? Pois é...
Espero que gsotem e caso se identificarem, não se preocupe, estamos todos no mesmo barco furado!
Em breve espero conseguir fazer um desing mais moderno e arrojado, mas, por enquanto, foi o melhor que pude fazer, a minha ansiedade era grande! Afinal, o que importa é o conteúdo ;D

Beijos a Todos!