domingo, 21 de novembro de 2010

Samambaias, Goodman e cactos


Arrastando-se pra casa pela calçada molhada pelo sereno, passa pela frente da farmácia. O letreiro pisca compulsivamente, todas as horas do dia, todos os dias do ano desde que se lembrava dele. O dono da farmácia o vira nascer, crescer e, finalmente, receber o direito para receitar os tantos medicamentos que vendia. Desde que aprendera a andar sozinho pela rua do bairro residencial, tinha o hábito de entrar farmácia adentro, cumprimentando o dono com um rápido aceno e subir na balança. Hábito este que não havia sido esquecido, como o de andar ziguezagueando pelos canteiros ou o de evitar as reentrâncias do chão ou o de pisar somente nas marcas brancas da faixa de pedestre. Todos os dias, não importando a hora, entrava na farmácia, acenava seu cumprimento de costume, conferia os números e ia embora, como quem olha para o relógio e, na verdade, nem sequer repara nos ponteiros.
            O ponteiro da balança antiga girava, enferrujada, entre a mesma faixa, um pouco abaixo do peso adequado, mas nada fora da normalidade. Não se preocupava com o peso. Ou a falta dele. Tanto que nem se dava ao trabalho de pendurar a pasta, mochila, casaco, jaleco e todas as outras pendengas que sua vida nômade de hospital em hospital o fazia carregar. Havia uma sensação de familiaridade, o subir na balança. Eram como velhos amigos de infância se encontrando antes e depois de um longo dia de trabalho. Durante a noite não havia iluminação em parte da farmácia e somente uma das portas de correr ficava aberta para os glutões necessitados de anti-ácidos, bêbados procurando analgésicos para o dia seguinte, namorados cuidadosos, pais e maridos solidários aos períodos mensais odiados pelas mulheres da casa e ele.
            Morava sozinho no apartamento alugado de seus pais desde que a Mãe se mudara para a casa da irmã solteirona numa cidadezinha praiana não muito distante. Abriu a geladeira e pegou com uma felicidade cansada o pote de sopa de macarrão da Mãe, que trouxera da última vez que as visitou. Certificou-se de que ainda estava em bom estado geral com uma breve ectoscopia e derrubou o líquido ainda não totalmente descongelado em uma panela vermelha, presente do Pai para a Mãe na época do casamento.
            Largou-se no sofá velho em frente à televisão, deixando que as mialgias intensas se diluíssem com o calor da sopa quente e reconfortante, que ia sorvendo a calmas colheradas enquanto observava às notícias com pouco interesse. Na mesa, ao lado da televisão, Goodman o acompanhava no ritual noturno, sonolento e faminto. De dentro do aquário antigo adornado por uma pedra de plástico e uns musgos que cresceram por falta de limpeza, o peixe dourado observava o Doutor coçar a cabeça atrás do pote de comida para peixes que comprara. Pelo visto, Goodman se alimentaria de pão mais uma vez.
            Revirava os armários da cozinha procurando a ração para peixes, desarrumando tudo o que a diarista havia aprumado na semana anterior. A moça só era contratada para ir semanalmente, mas às vezes aparecia no apartamento por pena do pobre Doutor. Morava sozinho com o peixe e ainda assim parecia que a casa era ocupada por um batalhão. Não que ela achasse o Doutor muito desordeiro. Ele era apenas Médico... Não tinha tempo nem para comprar as lâmpadas fluorescentes da cozinha. Se bem que a proximidade desta com a sala era tão grande que a luminosidade de uma servia para a outra e vice-versa.
            Não que a sala fosse muito pequena. Tinha um tamanho razoável para comportar o sofá; o móvel da televisão, que também servia de morada para Goodman; uma mesinha de centro feita por ele com uma tábua que sobrara no caminhão de mudanças e alguns livros inutilizados da época de colégio; uma estante que dividia o cômodo em sala e quarto de dormir; e livros. Muitos e muitos livros de Medicina e outros mais comprados no sebo, bem como revistas acadêmicas e outras que ganhara de brinde em congressos. Tudo muito bem organizado: espalhados pela sala, amontoados em cantos, sobre e debaixo da mesinha, na bancada da cozinha, ao lado da televisão, sob o aquário... Não jogava nenhum fora.
            Seres viventes oficiais na casa eram ele (ainda assim, variando com a hora do dia e estação do ano, parcialmente vivo), Goodman e um cactos no peitoril da janela. Os extra-oficiais incluíam o mofo, ácaros, aranhas e ocasionalmente algumas formigas que faziam morada pelo banheiro e cozinha. O Doutor já tivera o prazer da companhia de uma samambaia em casa. Pobrezinha não desfrutara o suficiente da companhia do venerável inqquilino do apartamento e secou aos poucos, pendurada na parede da sala. Já o cactos ao menos não se importava em ficar sozinho por longos períodos. Além do mais, mesmo que a solidão fosse tão grande ao pondo de fazê-lo se consumir de dentro para fora, sempre surgia um raminho juvenil por entre os espinhos antigos e eis que ressurgia com todo seu esplendor no peitoril da janela. Em determinados dias da semana o Doutor gostaria de que alguns de seus pacientes tivessem tal característica de Fênix e chacoalhassem fora suas mazelas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário