segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Anamnese, Rosário e Flor de Laranjeira


      Lavando-se na pia comum do corredor, ouvira fofocas da chegada do novo grupo de internos, todos obviamente perdidos, segurando presunçosamente seus estetoscópios e pranchetas, prontos para trabalhar na ala de Obstetrícia e Neonatologia. Pobres coitados, pensava o Doutor. Ouviu o grupo se aproximando, curioso à procura do anfiteatro para a primeira sessão clínica do ano, admirando até mesmo as infiltrações do teto e rachaduras de onde se despregava o reboco. Não que para alunos do sexto ano isso fosse novidade. Mas o privilégio de terem conseguido passar por todos esses anos numa faculdade com o maior índice de suicídios do País lhes enchia de orgulho e tudo parecia como se fosse a primeira vez. O primeiro doente, a primeira ausculta pulmonar de um enfisematoso, a primeira anamnese.
Desta o Doutor nunca esquecera. Um senhor idoso da enfermaria de Pneumologia sentado em posição de ortopneia no leito 4. Um senhor idoso de bigodes amarelados pela nicotina companheira de 64 anos, tantos quantos fora casado com sua querida e amada, cuja foto ficava na cabeceira do leito, adornada por um rosário trazido do Vaticano pelo neto. Nascera na cidade em que iria morrer e em 84 anos de existência nunca teria sentido o gosto de álcool, salvo em uma virada de ano em que os amigos lhe pregaram uma peça. Queixa principal sempre foi a boa e velha “falta de ar e dor no peito”. Fora isso, viroses comuns da infância, sendo sarampo a que mais se lembrava. Sua mãe fora lavadeira toda a vida e seu pai marceneiro, vindo do estrangeiro, daí teria tirados os olhos claros. Sem irmãos tivera que tomar conta da mãe doente, aquela doença do açúcar, depois que o pai falecera do coração. A cada sentença, o senhor do leito 4 inspirava rápido duas ou três vezes, expirando com dificuldade. Afogava-se em si mesmo, em suas próprias lembranças e, ocasionalmente, suas próprias lágrimas. O Doutor, ainda Acadêmico na época, anotava tudo com destreza de escrivão antigo, ora mirando o cilindro de oxigênio, ora checando o próprio correr do soro, porém, emendava um assunto em um próximo e mais outro e outro, acabou conhecendo décadas de mudança na cidade e no país. Ficara horas conversando com o senhor do leito 4 mas nunca lembrara seu nome. Somente no dia após a entrega, quando fora mostrar a boa nota recebida e as congratulações do professor acerca de sua muito bem colhida história familiar, encontrara o leito vazio, a cabeceira sem o porta retratos, sem cilindro de oxigênio, sem paciente. Pendurado na grade da cama estava o rosário. A enfermeira encontrou o Acadêmico sentado na cama com o rosário nas mãos, a anamnese jogada para um lado, murmurando as iniciais ‘P.L.M.’, também gravados no rosário. Nunca esquecera sua primeira anamnese, porque esta também fora sua primeira morte. E esta nunca se pode esquecer.
Lembrava de tudo isso durante os poucos segundos em que terminava de lavar as mãos e ouvir os animados Internos caminhando rumo à sessão clínica. De repente estacou. Reconhecera-a. Não a voz, nem o rosto, que, aliás, só vira de relance pelo espelho do lavatório, mas um aroma de flor de laranjeira enchia a sala de emergência, transformando o ambiente artificial em uma janela campestre no coração do Hospital. O doce perfume se intensificou em suas narinas, atingindo em cheio os bulbos olfativos, fazendo o córtex reconhecer o aroma da laranjeira em flor e associá-lo a um sorriso e um número de telefone.
Era Ela.