quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sonhos


Com um livro de Anatomia, um de Fisiologia, um de Medicina Interna, um caderno xerocado de um aluno que provavelmente não estava estudando na madrugada anterior à prova e uma xícara de café sobre a mesa tentava assimilar o máximo de informação possível. Anotava compulsivamente as informações tiradas dos livros lidos concomitantemente e, pelo adiantado da hora, inutilmente.
O café amargo descia arranhando a garganta, perfurando o estômago e chacoalhando os neurotransmissores já enfastiados pela semana de provas do último bimestre. Mas estava tudo ainda começando... Mal sabia ele o que estava por vir, nomes impronunciáveis de criaturas microscópicas cujo mal que causavam, outrora destruíram nações. Todas compiladas e catalogadas, nem todas memorizadas pelos seus veteranos e pouquíssimas identificadas corretamente na prova prática. O frio nas entranhas começava outra vez, fazendo o lápis correr mais rápido pelas páginas do caderno.
Uma voz grave murmurava ao seu lado, folheando um dos livros sebentos alugados na biblioteca semanas antes, mas que a vergonha o fizera abrir somente algumas horas atrás. “Fístula traqueoesofágica... eca... Epistaxe... Fenda palatina, ah coitado.... Como faz a manobra de Valsava???” Um entusiasta, um curioso, querendo saber de tudo e sobre tudo o que estudava. “Vou tirar meu CRM junto com você, você vai ver!” E continuava a murmurar, acompanhando mais uma vez outra madrugada insone que produzia uma corcova característica, identificável até o fim da vida. O cheiro das folhas revistadas de alguma forma parecia se entranhar nos seios paranasais e se aninhar em suas papilas gustativas. Era como lamber os livros tentando estudar. Talvez fosse o mais prático a se fazer.
Em meio aos renomados pesquisadores e seu colega de caderno impecável, as horas se passavam enevoadas, seguidas de baldes e baldes de café e bolo, trazidos pelo entusiasta. A semelhança era inegável, o mesmo perfil esguio, mesmos olhos merejados cor de amêndoa, mesmo início de barba... Os óculos pendidos quase que patologicamente na ponta do nariz, devido à pose de olhos grudados nas letras e figuras anatômicas que pareciam bailar diante de si. A voz ia se tornando cada vez mais e mais grave... E que diabos eram aqueles violinos tocando àquela hora?!? O potencial Doutor pestanejava, acordando assustado devido a uma sialorréia importante pendente da maxila entreaberta. Ou, como gostava de dizer, babava copiosamente sobre o caderno.
Violinos tocavam cada vez mais alto, insistentes. Olhara ao redor e nada mais reconhecia. Aquelas figuras já tatuadas nos giros cerebrais se confundiam, chocando-se com transmissores de catecolaminas por dentre os neurônios saturados. O gosto de cabo-de-guarda-chuva em sua boca era sofrível misturado às cigarras e violinos que competiam entre si para estabelecer qual dos dois promoveria sua cefaléia matinal. O companheiro não mais insone encontrava-se como morto, espichado no sofá fazendo o livro de Clínica Médica de cobertor por sobre o tórax que se elevava com dificuldade. Levantou-se e foi até a figura, buscando levá-lo para um dormitório mais confortável.
Qual foi sua surpresa ao ver, dentre os chiados ao redor e a bruma do sono e o turbilhão de informações anatomofisiohistopatológicas, cafeinérgicas e adrenérgicas que a figura que o acompanhava naquela madrugada do início da faculdade era ele mesmo, tranqüilo, meditando inconsciente sobre os destinos da nacionalidade. A onda de choque o sublimou da saleta do apartamento, arrebatando-o ao som dos violinos, largando-o logo em seguida sobre o que seria o mesmo sofá, doravante os puídos do tempo passado, na mesma posição, não obstante a troca do livro por uma apostila do Curso preparatório para a residência.
O vizinho do bloco em frente ouvia a rádio clássica numa altura suficientemente potente para atravessar a rua pouco movimentada àquela hora da manhã e penetrar em seus ouvidos atordoados pelo sonho do qual havia sido arrancado pelo seu subconsciente. Este velho amigo nunca o deixava concluir o raciocínio ilógico dos sonhos, talvez o protegendo de si mesmo. Levantou-se, esfregando os olhos, devolvendo os óculos ao local de origem e passou os dedos longos suave e carinhosamente pela borda do porta-retratos na mesinha de centro customizada. Seu velho companheiro de estudos retratado numa captura do tempo de anos pretéritos ao lado de uma Mãe muito moça e um bebê que não sabia como era bom o tempo em que nada mais o preocupava, senão a hora da janta ou as fraldas a descartar.
Suspirou fundo, levantando-se para as abluções matutinas, deixando para trás as lembranças do Velho, seu Velho, no qual ia se transformando pausada e orgulhosamente.

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