As
luzes fluorescentes do corredor lhe ardiam as costas, as paredes e o teto pareciam
se fechar ao seu redor, o chão ladrilhado bege media dez metros a mais do que de
costume e seu estômago ainda não decidira se estava vazio, cheio ou ia lhe
fazer a graça de devolver o rápido lanche que fizera sete horas antes. O peso
dos ombros após esforço exultante finalmente se fizera sentir, uma
vez que o flush de adrenalina tinha se passado. Procurando respirar
pausadamente, em busca de devolver o tão precioso oxigênio de volta ao córtex e
alinhar os pensamentos, traçava sua via crucis até a sala de espera da
emergência. Repassava um guideline que ele mesmo inventara para tais momentos
difíceis.
O
senhor de meia idade entrara carregado por sua esposa, seguidos de perto por
uma jovem, mistura perfeita do casal. Hematêmese, severa, palidez
cutâneo-mucosa, taquipneia, onde estava o esfigmomanômetro?!, temperatura não
foi possível de ser aferida, maqueiro preso no elevador, Doutor chega
apressado, equipe se apronta, síncope, acesso periférico encontrado, infusão,
parada cardio respiratória, o Doutor sobe na maca para iniciar a massagem,
o paciente precisava ser transferido... Em meio à inundação da Emergência, mãe
e filha se abraçam, observando o homem da casa ser levado para longe dos seus
olhos assustados. O Doutor viu-se na ansiedade da dupla, sabia como era estar
naquela situação.
As
passadas pesadas refletiam seus pensamentos. A responsabilização do Médico com
relação aos seus pacientes, seu bem-estar, seu diagnóstico, seu prognóstico,
sua profilaxia, sua promoção de Saúde, sua terapia e recuperação é
perfeitamente plausível. Quando sem
intercorrências. Entretanto, a valorização do erro, da perda, do engano, da
morte é tão avassaladora, que os esforços anteriores geralmente são atirados ao
lixo com desgosto, juntamente com os capotes e luvas ensangüentados, produzidos
em tais situações. Era, pra ele, quase que doloroso perceber que,
em um milisegundo, era requisitado a executar uma formulação matemática que abrangesse todas as conseqüências
financeiras, éticas e morais, os danos, potenciais vítimas e opinião pública de
um caso em questão e seguir com a melhor conduta. Melhor para quem? Para ele, o mais importante era promover o
melhor atendimento para seus pacientes, mas e para o algorítimo, isso era tudo?
Agora
se encontrava em cima da maca, do outro lado da cena, tendo a responsabilidade
de trazer de volta à vida um marido, um pai, um filho, possivelmente um trabalhador,
um amigo e um ser humano. O diagnóstico sombrio de sangramento sem controle não
inibiam as massagens enérgicas, tão pouco suas ordens à equipe. Aprendera ao
longo da formação que era preciso lutar até o fim, procurando oferecer a melhor
conduta e o melhor tratamento possível ao paciente, desistir, certamente, não
deveria ser uma opção. Os esforços se somavam, porém o sangue escorria, acessos
venosos se perdiam, costelas eram fragilizadas e os sinais vitais desabavam em um
precipício infinito. Era tempo de pesar o custo benefício da conduta e o Doutor
nunca conseguira se acostumar.
Não
estava o Doutor ciente de todos os riscos e benefícios aos quais seu paciente, no
momento, estava exposto? Sendo o resultado favorável, não importaria para o
paciente e seus familiares as iminentes seqüelas da doença e do tratamento?
Sendo negativo, não seria ele, Doutor, o
incapacitado? O que lhe incomodava mais era o fato de que, em todas as
discussões bioéticas de condutas e tomadas de decisão, em nenhum momento ele
mesmo tinha o direito de se preocupar com si. Seus sentimentos de impotência,
de perda, de fragilidade. Afinal, ao mesmo tempo que avaliava os mais delicados
detalhes dos reflexos de sua escolha final, tinha que aceitar que suas decisões
prévias o fizeram chegar àquele ponto crítico. Tinha que admitir que, mesmo
cogitando todas as possibilidades em sua cabeça, a resolução não dependia dele.
A Ciência, em si, está indubitavelmente submetida a algo que a humanidade
conhece bem: a vida e sua finitude. Cabia a ele como Médico aliviar o
sofrimento dos que estavam à sua volta. Mas e o seu sofrimento, tinha vez?
Trinta
minutos de trabalho árduo.Trinta minutos de tentativa impostos ao paciente. Trinta minutos de dor.
Trinta minutos de discussão, questionamento e argumentação mental Trinta
minutos que se transformaram em horas esperançosas na sala de espera. Um
cansado movimento de decisão.
Agarrado
à máscara cirúrgica, calças respingadas de sangue, sabia que o resultado do
caso não devia lhe trazer culpa ou arrependimento. Sabia que ele, Doutor,
nunca fora senhor do tempo, soberano sobre as enfermidades e suas conseqüências,
mas sim, que estava submetido aos caprichos do corpo humano e seu refinado
relógio biológico. Não podia deixar de corroer-se por ver a vida se esvair pelos
dedos, por estar ali encarando os familiares, por ser ele o pivô de um
sentimento indelével que ele muito bem conhecia, porém foi condicionado a
suprimir...
Com a
certeza de que era o melhor a se fazer, o Doutor suspendeu a reanimação.
Flatline.