quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Sangue, Bioética e Flatline



                 As luzes fluorescentes do corredor lhe ardiam as costas, as paredes e o teto pareciam se fechar ao seu redor, o chão ladrilhado bege media dez metros a mais do que de costume e seu estômago ainda não decidira se estava vazio, cheio ou ia lhe fazer a graça de devolver o rápido lanche que fizera sete horas antes. O peso dos ombros após esforço exultante finalmente se fizera sentir, uma vez que o flush de adrenalina tinha se passado. Procurando respirar pausadamente, em busca de devolver o tão precioso oxigênio de volta ao córtex e alinhar os pensamentos, traçava sua via crucis até a sala de espera da emergência. Repassava um guideline que ele mesmo inventara para tais momentos difíceis.

                O senhor de meia idade entrara carregado por sua esposa, seguidos de perto por uma jovem, mistura perfeita do casal. Hematêmese, severa, palidez cutâneo-mucosa, taquipneia, onde estava o esfigmomanômetro?!, temperatura não foi possível de ser aferida, maqueiro preso no elevador, Doutor chega apressado, equipe se apronta, síncope, acesso periférico encontrado, infusão, parada cardio respiratória, o Doutor sobe na maca para iniciar a massagem, o paciente precisava ser transferido... Em meio à inundação da Emergência, mãe e filha se abraçam, observando o homem da casa ser levado para longe dos seus olhos assustados. O Doutor viu-se na ansiedade da dupla, sabia como era estar naquela situação.

                As passadas pesadas refletiam seus pensamentos. A responsabilização do Médico com relação aos seus pacientes, seu bem-estar, seu diagnóstico, seu prognóstico, sua profilaxia, sua promoção de Saúde, sua terapia e recuperação é perfeitamente plausível.  Quando sem intercorrências. Entretanto, a valorização do erro, da perda, do engano, da morte é tão avassaladora, que os esforços anteriores geralmente são atirados ao lixo com desgosto, juntamente com os capotes e luvas ensangüentados, produzidos em tais situações. Era, pra ele, quase que doloroso perceber que, em um milisegundo, era requisitado a executar uma formulação matemática que abrangesse todas as conseqüências financeiras, éticas e morais, os danos, potenciais vítimas e opinião pública de um caso em questão e seguir com a melhor conduta. Melhor para quem?  Para ele, o mais importante era promover o melhor atendimento para seus pacientes, mas e para o algorítimo, isso era tudo?

                Agora se encontrava em cima da maca, do outro lado da cena, tendo a responsabilidade de trazer de volta à vida um marido, um pai, um filho, possivelmente um trabalhador, um amigo e um ser humano. O diagnóstico sombrio de sangramento sem controle não inibiam as massagens enérgicas, tão pouco suas ordens à equipe. Aprendera ao longo da formação que era preciso lutar até o fim, procurando oferecer a melhor conduta e o melhor tratamento possível ao paciente, desistir, certamente, não deveria ser uma opção. Os esforços se somavam, porém o sangue escorria, acessos venosos se perdiam, costelas eram fragilizadas e os sinais vitais desabavam em um precipício infinito. Era tempo de pesar o custo benefício da conduta e o Doutor nunca conseguira se acostumar.

                Não estava o Doutor ciente de todos os riscos e benefícios aos quais seu paciente, no momento, estava exposto? Sendo o resultado favorável, não importaria para o paciente e seus familiares as iminentes seqüelas da doença e do tratamento? Sendo negativo,  não seria ele, Doutor, o incapacitado? O que lhe incomodava mais era o fato de que, em todas as discussões bioéticas de condutas e tomadas de decisão, em nenhum momento ele mesmo tinha o direito de se preocupar com si. Seus sentimentos de impotência, de perda, de fragilidade. Afinal, ao mesmo tempo que avaliava os mais delicados detalhes dos reflexos de sua escolha final, tinha que aceitar que suas decisões prévias o fizeram chegar àquele ponto crítico. Tinha que admitir que, mesmo cogitando todas as possibilidades em sua cabeça, a resolução não dependia dele. A Ciência, em si, está indubitavelmente submetida a algo que a humanidade conhece bem: a vida e sua finitude. Cabia a ele como Médico aliviar o sofrimento dos que estavam à sua volta. Mas e o seu sofrimento, tinha vez?

                Trinta minutos de trabalho árduo.Trinta minutos de tentativa  impostos ao paciente. Trinta minutos de dor. Trinta minutos de discussão, questionamento e argumentação mental Trinta minutos que se transformaram em horas esperançosas na sala de espera. Um cansado movimento de decisão.  

                Agarrado à máscara cirúrgica, calças respingadas de sangue, sabia que o resultado do caso não devia lhe trazer culpa ou arrependimento. Sabia que ele, Doutor, nunca fora senhor do tempo, soberano sobre as enfermidades e suas conseqüências, mas sim, que estava submetido aos caprichos do corpo humano e seu refinado relógio biológico. Não podia deixar de corroer-se por ver a vida se esvair pelos dedos, por estar ali encarando os familiares, por ser ele o pivô de um sentimento indelével que ele muito bem conhecia, porém foi condicionado a suprimir...

                Com a certeza de que era o melhor a se fazer, o Doutor suspendeu a reanimação.
                Flatline.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Ao Abrir Dos Olhos


Enquanto caminhava na rua, ouviu um carro freando bruscamente, seguido de gritos curtos, pedidos de socorro, pessoas correndo. Na rua estava um carro com o pára-choque retorcido, o motorista assustado, no asfalto a trajetória brusca, promovida pela perda de controle do veículo na tentativa de desviar de um cachorro que se soltara da coleira, estava queimada pelos pneus em alta velocidade. Na calçada, um senhor de meia idade, de bermuda e camiseta ainda segurava parte da coleira partida na mão enquanto jazia semi inconsciente na mesma posição em que fora lançado pelo impacto. O Doutor correu.
Sentado numa cadeira do CTI, observava, ao seu lado, o Paciente em coma. A família acabara de ir embora, frustrada por não saber o que estava acontecendo com seu irmão, pai, avô. Frustrada com uma situação de ausência repentina, de um corte de laços sem explicação. Como podia lá estar o corpo funcionante, sem o espírito? O próprio Doutor se espantava com o estado de coma. Sem previsões, sem respostas, sem controle dele. Sentado na cadeira só lhe restava esperar. Esperar e pensar. Lembrou-se de ter ouvido um dia um comentário despreocupado de um conhecido, sobre profissões e ocupações na vida, após terem assistido a um filme numa mostra cultural: “Como são felizes as pessoas que trabalham com isso. Não lidam com dores e problemas.”
Estranho achar que é preciso ficar longe das dores, das preocupações, das doenças e da morte para ser feliz. O Doutor indignou-se à tempo, mas pouco pode fazer, pois o conhecido foi-se e a conversa se perdeu num momento curto de conversa à mesa. Entretanto, sentado naquela cadeira, o argumento veio à tona e o cérebro fervilhava de questionamentos e discussões. Seriam felizes aqueles que pensavam e escreviam romances, pintavam lindas obras, produziam filmes, desenhavam roupas? Seriam infelizes aqueles que atendiam em bancos, faziam contas em empresas, administravam bens em escritórios? Seria infeliz ele mesmo, Doutor, atendendo sua própria necessidade de cuidar do próximo?
Engana-se – divaga ele para o doente – que é preciso formar-se filósofo para pensar. Todos tem dentro de si capacidade para filosofar, bastam ser feitas as perguntas certas. Para filosofar, basta-se pensar. O Doutor sabia por quê não filosofava tanto quanto costumava fazer em mesas de bar, com amigos próximos. Pensar é inevitável, porém o muito pensar, a extravagância de pensamento incomoda e incomoda muito. Invariavelmente chegam aquelas dúvidas sem respostas feitas de si mesmo para si próprio e a busca por esclarecimento do beco sem saída criado pela própria mente, por muito, ocupa literalmente um espaço às vezes necessário para a vida. Sim, pois não se tem o mundo somente nas idéias, a praticidade é algo relevante. O Doutor se espantava quando tais sábios filósofos apregoam a cruz à rotina e à vivência cotidiana. Ora, não vivem eles mesmos do material, do real? Não têm todos corpo, fome, sono, desejos? É preciso sim dar espaço o pensamento à praticidade do dia a dia.
No caso do Doutor, o dia a dia eram a Medicina. Enquanto amigos formavam-se filósofos, literários, músicos, escritores, atores, artistas. Formava-se Médico. Enquanto viajavam, escreviam, dançavam, conheciam o estrangeiro. Trabalhava, estudava, conhecia dores, conhecia doenças. Porém nunca antes o Doutor sentiu-se diferente, melhor, pior, mais inteligente, menos afortunado da sua escolha profissional. Somente quando foi chamado de triste, percebeu o que sua condição parecia às vistas do mundo à fora. E não concordava de maneira nenhuma.
Ele não se sentia mais inteligente que a população geral. Também nunca achou que sua profissão era mais importante que as outras, o que seriam seus longos plantões por vezes ociosos, sem bons filmes para distrair a cabeça? Não se sentia inferior por não ter conhecido tanto o estrangeiro e tão novo quanto colegas que se formaram em outras áreas. Nunca deixou de se interessar pela arte e pela música. Tampouco se entristeceu por ainda não ter constituído família. A filosofia do Doutor era a mesma que movia todos os meios artísticos: pessoas. Lidar com o ser humano era considerado por ele também uma obra de arte, pois o indivíduo é único, com um raciocínio único, um imenso universo de idéias, fé, esperança, amor, ódio, tristeza e energia imaterial contido num complexo mecanismo de carne e osso. Absolutamente fascinante. Não se pode ficar indiferente ao corpo e seu funcionamento e era por isso que acreditava que todos que tinha contato na época da graduação se interessavam tanto em saber sobre as aulas de anatomia. A curiosidade humana faz de cada um pensador.
A sensação de um toque frio em seu braço o fez desviar o olhar. O Paciente acordara, esticara a mão, abrira os olhos e, cansado, sorriu por detrás da máscara de oxigênio, pois reconheceu o primeiro rosto que viu, quando foi levantado da calçada dias antes. Aquele homem agora estava livre para ler, apreciar pinturas, ir ao cinema, comer, dançar, cantar, pensar. Estava livre para viver. Naquele momento, não existia poeta, ator, cantor, diretor, filósofo, escritor, não existia ninguém presenciando tão suprema satisfação e alegria. Ninguém no mundo era tão realizado com um simples abrir de olhos... Feliz, o Doutor sorriu de volta.

sábado, 25 de junho de 2011

Pinball, micoses e chopp

            A perna inquieta fazia toda a mesa chacoalhar, num movimento incessante e barulhento. As folhas, lápis, livros farfalhavam com o tremor nervoso do estudante curvado sobre a tabela de tempo de meia-vida dos antifúngicos menos hepatotóxicos. A maioria dos medicamentos causava os mesmos efeitos adversos que as provas da semana seguinte: náuseas, desconforto abdominal, vômitos e diarréia. E mesmo assim a concentração lhe escapava tão rapidamente quanto a glicose sérica sob um ataque de infusão insulínica. Alguns nomes de fungos tinham mais letras do que o alfabeto, sendo impronunciáveis, quanto mais memorizados para escrever na hora da prova. E as doses, vias de administração, indicações e contra-indicações batiam pelas sinapses a fora, como sádicas bolinhas de pinball, se jogando para fora do crânio pelos ouvidos.
                Já nem sentia o movimento do corpo, suas cutículas nem sequer serviam para a função de serem comidas. O dorso pendia para frente, anestesiado, e a cabeça parecia ter sido separada do pescoço, leve e nebulosa. Não distinguia mais seus ‘Ns’, ‘Ms’ e ‘Us’ das anotações em sala e as lâminas histológicas representadas no livro tinham semelhança com quadros abstratos, em que os artistas passavam por fazes: ora demasiado rosa, ora por demais roxas. O estômago não sabia mais reclamar a fome, aturdido com a miscelânea hormonal irrompendo pelo sangue... Seria fome...? Seriam náuseas...? Seria somente um vazio existencial...?
                O susto do toque estridente da campainha o tirou facilmente do caderno improvisado de travesseiro. Com o rosto ainda marcado pela mola de metal, viu o Amigo saltar sala adentro, surpreso por vê-lo naquelas condições deveras miseráveis: o Velho e a Mãe fora de casa, em visita à cidade natal; comida congelada na geladeira; cama, mesa, louça, roupas sujas... tudo esquecido durante aquela semana de provas. Suas anotações sendo encontradas até mesmo coladas na porta do banheiro, em frente ao vaso sanitário. Latas de energético, copos de suco, canecas para café se acumulavam aonde conseguissem se apoiar, cambaleando em quinas de mesas, prateleiras, bancadas de pia... onde quer que fosse levadas durante as caminhas de leitura. Caixas de lenço de papel vazias junto a remédios antialérgicos amontoavam-se próximo aos livros velhos, cuja poeira era maior inimiga do pobre estudante.
                Sem forças para tripudiar, sentiu o amigo o arrastar para o chuveiro, arrancando os resumos do caminho. Viu-se tomando um banho impecável, aparando a barba e arrumando-se com roupas novas, sem saber o motivo. Indagou com o olhar apático o Amigo, cujo hálito delatava já ter iniciado os trabalhos etílicos por conta própria, sorria e apressava-o com destreza habitual de quem está animado. “Ela vai levar uma amiga! Motivo suficiente pra você ir!!” Mesmo sem saber ao certo com quem havia sido arranjado ou o motivo da comemoração, subiu na moto do Amigo, rumo ao desconhecido e obscuro momento de diversão. A casa cheia fervilhava, o som era distinguível há metros da entrada, abalando as janelas vizinhas. Sobre as cabeças pairava a já conhecida fumaça que, misturando-se às luzes coloridas que piscavam no ritmo da música, dava um ar de descontrole ao ambiente. Na pista, mais perto das caixas de som, calouros e veteranos eram iguais. Igualmente felizes, igualmente etilizados, igualmente suados de tanto dançar. Aos poucos, o tremor da perna acostumou-se à batida e o arrastou para perto daquela massa pulsante de gente, enquanto o Amigo ficara para trás, junto do seu par. O chopp quente, o exagero de fumaça de cigarro, as maquiagens escorridas pelo rosto das meninas, a música desconhecida, tudo parecia incrivelmente brilhante e divertido, fazendo as ameaçadoras provas desaparecerem. Como chegou em casa é algo que preferia deixar a cargo da amnésia provocada pelo álcool. O sonho psicodélico da noite anterior dava lugar novamente à preocupação monstruosa de cavernas pulmonares e dermatofitoses. O relógio ao seu lado piscavam as vermelhas 15:00 da tarde de domingo, marcando a urgência de arrumar a casa antes do retorno dos seus verdadeiros donos, em duas horas, quando então seria impossibilitado de retomar o ritmo de estudo para ouvir fofocas contadas pela Mãe sobre a cidadezinha. Então seria a hora do jantar e comeria a primeira refeição decente na conta de uma semana e então seria a hora de repassar para o Velho um breve resumo da prova do dia seguinte. E então seria a hora de apelar para quem quer que estivesse ouvindo que as bolas de pinball fossem recolocadas no lugar ou que fosse cobrado, pelo menos, o que efetivamente sabia. E então seria a hora de acordar e correr para o auditório e fazer a prova. E então seria hora de aguardar ansioso pelo resultado.
           Recebeu feliz, anuviado, exausto, seu melhor resultado de Infectologia até então.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cirurgia Absoluta e Clínica Soberana

             Goodman soltava bolhas apreensivas, observando o Doutor caminhar pela pequena sala entulhada de livros e material de estudo. O envelope nas mãos já se tornava úmido da sudorese nervosa que brotava das palmas lívidas e trêmulas. Acabara de chegar em casa após uma passada matutina na lavanderia do Chinês com sua trouxa de roupas limpas, mas ainda assim amarrotadas. A diarista passaria as roupas quando voltasse das férias, caso ele tivesse a decência de comprar uma tábua de passar roupas nova. O cactos no peitoril da janela mudara de conformação mais uma vez, assemelhando-se agora a um homenzinho dançarino com ambos os braços para cima. Há quanto tempo o Doutor não se via naquela posição.
                Todos os habitantes da casa pareciam tensos, curiosos para saber o conteúdo do envelope, mas ao mesmo tempo amedrontados demais, cansados demais para serem arrebatados por notícias, ruins ou boas. Estudara tanto, se esforçara tanto... Mas ao mesmo tempo nem tinha certeza se era esse o caminho correto a seguir, o desfecho certo na vida, a História Patológica Pregressa ideal para sua anamnese. A Grande Prova de Residência Médica era para os acadêmicos de Medicina como uma volta para o passado longínquo do Cursinho pré-vestibular. Ah se o Doutor soubesse como seriam os anos subseqüentes da festa que fizeram em casa quando foi aceito na faculdade. Teria aproveitado cada segundo possível da sua vida feliz, menos preocupado com as notas em matemática ou português. Agora sentia-se como um adolescente que procura seu nome na lista de aprovados no jornal.
                Nunca tivera tanta certeza do que escolher como especialidade. Começara pelo básico: sim, precisava escolher alguma delas, somente generalista não gostaria de ser. Não lembrava-se mais se tomara essa decisão lúcido e orientado ou ligeiramente direcionado pelos catedráticos professores que ainda se dispunham a ministrar as aulas e não mandar os assistentes. Desde cedo na faculdade os estudantes passam por um divisor de águas categórico e imutável, uma guerra Napoleônica ou melhor dizendo, Hipocrática entre duas grandes vertentes da Medicina: Clínica ou Cirurgia. Podia ter dúvidas a cerca da especialidade a seguir, claro, mas nunca da área. Ou eram cirurgiões ou eram clínicos e algo mais claro do que isso, somente coriza hialina. Por seis anos da sua vida, tentara não pensar muito sobre o assunto...
Nos anos em que rodava na enfermaria do Hospital da faculdade, era conhecido por todas as enfermeiras e pacientes, recebia bolo nos dias de visita das avós, mães e irmãs, afagos e abraços de todos. Nem ele mesmo compreendia de onde as pessoas percebiam tanto carisma, tanta vocação para ouvinte. Talvez porque passasse uma hora colhendo o histórico de um novo paciente, ou porque soubesse explicar com os detalhes suficientes para que um senhor idoso pudesse entender um determinado procedimento delicadíssimo ao qual seria submetido. Sempre se destacou nos procedimentos básicos de manejo com o paciente, ou melhor, com pessoas, fossem eles idosos, crianças, funcionários do hospital ou colegas.  Queria estar por perto, ouvir os desfechos, saber dos dias de alta. Visitava pacientes de enfermarias outras que não a sua específica, não necessariamente para auscultar um sopro em terceira bulha ou estertor sub-crepitante, tampouco avaliar a possível doença de Addison no leito 12... Esse seu lado também era percebido por alguns professores, mas nem sempre tão bem ressaltado. Muitas vezes era advertido de que, caso se importasse demais, perderia a imparcialidade.
               
Ao mesmo tempo, quando se despontava brilhantemente nas aulas de Anatomia, ganhava leves tapinhas do ombro do professor, devido às habilidades para dissecar quase que perfeitamente vasos e nervos miúdos dos membros superiores e inferiores. Habilidade essa que não se restringia ao Anatômico, mas era levada aos almoços em família, nos quais recebia uma porção de corações de galinha e abria-os perfeitamente para mostrar aos primos mais novos as valvas, artérias e cordas tendíneas. Lembrava de um deles em que, dissecando uma aorta, conseguira retirar um trombo que ocupava quase todo o calibre do vaso, sendo muito provavelmente a causa mortis do animal, não fosse o abate prematuro. Sempre fora dotado de habilidades manuais suficientes para fabricar seus próprios cartões de aniversário, cortar em linhas retas e promover suturas delicadas. Via uma certa beleza na Cirurgia, o ambiente asséptico, calmo e absolutamente controlado, com música ambiente e paciente em um raro momento de tranqüilidade.
                                Então tomara sua decisão, mas não seguiu a corrente desesperada de estudantes que terminam a faculdade e mergulham nos concursos de Residência. Com uma inspiração profunda e longo período de apneia, aceitou o trabalho no Plantão do Hospital Municipal e outro no Hospital Pediátrico enquanto estudava com calma para a grande prova. Decidiu-se por ele, não pelas insistências de professores, ou por olhadas maldosas de colegas ou por pedidos de pacientes. Decidiu-se por começar do começo. Decidiu-se por não ser imparcial.
                Com um movimento brusco, rasgou o envelope.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Gargalhadas e café expresso


            Encostado no balcão da lanchonete de costume, que ficava na calçada de frente para a saída lateral do Hospital, onde apreciava mais um delicioso pastel chinês que, na maioria das vezes, substituía o almoço ou, quem sabe, o jantar, o Doutor aplacava de leve a fome que parecia revirar as entranhas e colabar o estômago (se tal fosse possível), quando ouviu ao longe o som mais agradável de toda uma temporada de falta de nascimentos na enfermaria. Sim, por mais irritante que possa parecer para a maioria das pessoas, para o Doutor o choro de uma criança era quase uma ode poética, principalmente se proveniente de uma criança recém nata. Imaginar que há pelo menos nove meses passados aqueles poucos quilos cianóticos, cobertos de muco que choram e se contorcem à procura do calor do colo da mãe, retém reflexos primitivos, respiram e dormem eram apenas duas células de corpos diferentes que se uniram num acontecimento que tem tudo, absolutamente tudo, para dar errado, produzia-lhe um frio inexplicável na espinha. Ir além e pensar que ele mesmo fora um desses acontecimentos um dia era pensamento por demais perigoso para a quarta noite em claro num plantão na Pediatria.
O segundo som favorito do Doutor era este que ouvia na manhã cinzenta e congesta daquela chuva fina que molha pouco e incomoda demasiado. A gargalhada musical vinha do outro lado da calçada, leve e eficaz, direta e sincera como toda boa e bem dada gargalhada deveria ser. Como era rara uma daquelas! Enquanto virava a cabeça à procura do foco de emissão, lembrava da infância na casa da Tia, perto da praia, na época em que uma das poucas preocupações era evitar areia em locais impróprios e ficar o máximo de tempo possível no mar, jogando bola ou simplesmente deitado na areia olhando as nuvens e imaginando desenhos inimagináveis. A época em que quando ia se deitar à noite, a cama embaixo da janela estava fresca da maresia, enquanto o corpo quente devido à exposição ao sol diária ainda sentia o balanço do mar, embalando um sono profundo e despreocupado. A época em que era efetivamente feliz e não sabia. Na verdade, ainda era feliz, só tinha lapsos longos de memória, só isso... Em câmera lenta seu olhar, através da acomodação adequada do cristalino após ser corrigido sensivelmente pelas lentes arranhadas dos óculos de grau pendurados ao nariz, foca nitidamente o ser capaz de levá-lo e trazê-lo de volta das suas lembranças mais reconfortantes.
Ela estava sentada no chão, ao pé de uma rampinha que promove acesso de deficientes físicos, idosos, gestantes e médicos apressados ao Hospital. Folhas de papel espalhadas à volta, molhadas e sujas do lodo acumulado nas frestas das pedras portuguesas que adornam a calçada. Uma bolsa caindo do ombro babava uma série de outras bolsinhas coloridas, cada uma com uma diferente finalidade, mas  as perceptíveis eram a de higiene dental, absorventes íntimos, material de papelaria, dinheiro e provavelmente um estetoscópio. Transeuntes se aglomeram curiosos, um vendedor ambulante corre para levantá-la. Um copo descartável era amassado em sua mão que tentava inutilmente juntar as folhas, afastar o cabelo do rosto, abafar a risada, secar as lágrimas que teimavam a escorrer, talvez pela dor da queda, talvez pela graça da situação. A outra mão não sabia a qual das tantas mãos solícitas segurar enquanto tentava se levantar. Uma mancha amarelada seguia do bolso superior do jaleco até abaixo do inferior e, a julgar pela extensão, ele, sábio Doutor, exímio conhecedor da famosa bebida intitulada café, diria que nenhum mero gole foi tomado.
A graça e leveza e honestidade com que Ela se levantava, corava de vergonha, ria, ajeitava o cabelo, agradecia, pedia desculpas, colocava de volta um sapato, buscava reaver suas bolsinhas coloridas, empurrava os óculos de volta para o rosto, pegava as folhas que lhes eram entregues por pedestres, sacudia o jaleco molhado de café tudo ao mesmo tempo era venerável e digna da admiração estática que o Doutor se encontrava. Lábio entreaberto, sobrancelhas franzidas, lanche na mão e refresco na outra, cabeça levemente pendida para um lado. Aquela gargalhada...
A movimentação se dissipou, Ela sumiu calçada adentro quando o Doutor dera a última mordida no pastel, o lanche fora pago e o dia seguiu com nada mais de interessante ou nostálgico, além de uma fratura de tíbia e um pneumotórax que chegaram juntos vindos do mesmo jogo de futebol.
No vestiário, ao trocar de roupa, meteu a mão nos bolsos e encontrou mias uma vez o famigerado post-it amarelo com número de telefone.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Anamnese, Rosário e Flor de Laranjeira


      Lavando-se na pia comum do corredor, ouvira fofocas da chegada do novo grupo de internos, todos obviamente perdidos, segurando presunçosamente seus estetoscópios e pranchetas, prontos para trabalhar na ala de Obstetrícia e Neonatologia. Pobres coitados, pensava o Doutor. Ouviu o grupo se aproximando, curioso à procura do anfiteatro para a primeira sessão clínica do ano, admirando até mesmo as infiltrações do teto e rachaduras de onde se despregava o reboco. Não que para alunos do sexto ano isso fosse novidade. Mas o privilégio de terem conseguido passar por todos esses anos numa faculdade com o maior índice de suicídios do País lhes enchia de orgulho e tudo parecia como se fosse a primeira vez. O primeiro doente, a primeira ausculta pulmonar de um enfisematoso, a primeira anamnese.
Desta o Doutor nunca esquecera. Um senhor idoso da enfermaria de Pneumologia sentado em posição de ortopneia no leito 4. Um senhor idoso de bigodes amarelados pela nicotina companheira de 64 anos, tantos quantos fora casado com sua querida e amada, cuja foto ficava na cabeceira do leito, adornada por um rosário trazido do Vaticano pelo neto. Nascera na cidade em que iria morrer e em 84 anos de existência nunca teria sentido o gosto de álcool, salvo em uma virada de ano em que os amigos lhe pregaram uma peça. Queixa principal sempre foi a boa e velha “falta de ar e dor no peito”. Fora isso, viroses comuns da infância, sendo sarampo a que mais se lembrava. Sua mãe fora lavadeira toda a vida e seu pai marceneiro, vindo do estrangeiro, daí teria tirados os olhos claros. Sem irmãos tivera que tomar conta da mãe doente, aquela doença do açúcar, depois que o pai falecera do coração. A cada sentença, o senhor do leito 4 inspirava rápido duas ou três vezes, expirando com dificuldade. Afogava-se em si mesmo, em suas próprias lembranças e, ocasionalmente, suas próprias lágrimas. O Doutor, ainda Acadêmico na época, anotava tudo com destreza de escrivão antigo, ora mirando o cilindro de oxigênio, ora checando o próprio correr do soro, porém, emendava um assunto em um próximo e mais outro e outro, acabou conhecendo décadas de mudança na cidade e no país. Ficara horas conversando com o senhor do leito 4 mas nunca lembrara seu nome. Somente no dia após a entrega, quando fora mostrar a boa nota recebida e as congratulações do professor acerca de sua muito bem colhida história familiar, encontrara o leito vazio, a cabeceira sem o porta retratos, sem cilindro de oxigênio, sem paciente. Pendurado na grade da cama estava o rosário. A enfermeira encontrou o Acadêmico sentado na cama com o rosário nas mãos, a anamnese jogada para um lado, murmurando as iniciais ‘P.L.M.’, também gravados no rosário. Nunca esquecera sua primeira anamnese, porque esta também fora sua primeira morte. E esta nunca se pode esquecer.
Lembrava de tudo isso durante os poucos segundos em que terminava de lavar as mãos e ouvir os animados Internos caminhando rumo à sessão clínica. De repente estacou. Reconhecera-a. Não a voz, nem o rosto, que, aliás, só vira de relance pelo espelho do lavatório, mas um aroma de flor de laranjeira enchia a sala de emergência, transformando o ambiente artificial em uma janela campestre no coração do Hospital. O doce perfume se intensificou em suas narinas, atingindo em cheio os bulbos olfativos, fazendo o córtex reconhecer o aroma da laranjeira em flor e associá-lo a um sorriso e um número de telefone.
Era Ela.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Gênesis


Fora acordado por um colega que pouco via, pois diferente dele, este lidava com o outro extremo, com o início da Vida. Ele considerava uma especialidade alegre, não estava acostumado a esse tipo de reação dos pacientes, esse movimento ilógico e sobrenatural que é a geração de um ser dentro de outro. Patinava pelo corredor parcialmente escuro devido ao adiantado da madrugada seguindo o colega Obstetra que o enchia de informações codificadas sobre a paciente, o pai, a anestesia, o pré-natal e o desfalque da equipe, motivo principal de ter sido tirado de mais um desconfortável pestanejar na primeira maca da emergência.
            Mal teve tempo de se lavar, quanto mais calçar as luvas. Chegou no ápice de uma contração e vislumbrou a teatral cena apocalíptica, caótica, prolixa e absolutamente bela comum a qualquer parto vaginal. O Obstetra dirige, sentado em um banquinho de três pernas, guiando o bebê pelo seu trajeto obscuro; outra Obstetra pressionando a barriga por cima, sendo o ponto para que a parturiente não esquecesse seu papel de respirar e fazer força da maneira correta na mesa; o Pediatra aguardando sua vez na coxia, agarrando-se a um pano verde para aquecê-lo e posteriormente secar a criança; duas Enfermeiras dando suporte técnico para as pernas exaustas por estarem em posição deveras desconfortável; o Anestesista assegurando pelo acesso venoso o refrigério parcial da parturiente; a Mãe, atriz central da trama, aclamada e rodeada por todos que tentavam motivá-la a continuar; e finalmente o Pai.
            Enquanto assegurava o lugar de uma das Enfermeiras, atracando-se à perna da parturiente, o Doutor pôs-se a observar a figura do Pai, seu personagem favorito do balé da sala de parto. Um mero coadjuvante em meio a tanto tumulto, a aflição e impotência estampados no rosto suado e cansado.  De tempos em tempos, enquanto fazia força e sofria as dores da esposa, como todos os outros, buscava pela máquina fotográfica no bolso do pijama cirúrgico, querendo registrar o momento em que sua vida mudaria completamente: o nascimento do primeiro filho. O Pai confuso com tantos nomes e gritos e ordens para sua esposa, de pé, ao lado da cabeceira, mãos trêmulas segurando a máquina. A informação de complicações circulava à boca pequeníssima em meio a equipe técnica do espetáculo e os olhares dos Médicos se encontravam rapidamente em cumplicidade, para cada um ter certeza do que deveria fazer.
            À beira da exaustão, a Mãe já não sabia mais a que familiar ou santo recorrer dentre os monólogos sofrido de dor e força. Estava cumprindo primorosamente seu papel de guerreira e mulher determinada há horas, horas demais na sua concepção. O apoio veio da forma mais adequado possível. O Pai, em uma epifania do real significado de ser Homem e Marido agarra a mão da Esposa, lhe beija a testa e diz que a ama, o quanto estava orgulhoso dela e como estava sendo corajosa naquele momento.
            O tempo parou por um ou dois segundos talvez, dando licença para o carinho daquele casal, para um momento de vislumbre de pupilas dilatadas de dois amantes que estavam prestes a segurar o resultado palpável, frágil e rosado de seu casamento. E ali, sem capote, sem luvas, afastando a perna parcialmente anestesiada do caminho, ele, Médico formado, Doutor, sábio Doutor, compartilhou uma lágrima absorvida pela máscara cirúrgica que escondia o sorriso mais franco que sorrira desde sua formatura. Ali suspirou fundo e sentiu uma bruma leve de felicidade e realização pela profissão que escolhera, sentimento raríssimo durante a vida acadêmica e noites insones. Um espirro forte e súbito de sangue mancha-lhe a lente do óculos, rosto, máscara e pijama cirúrgico, esbofeteando-o para fora de seu enlevo profissional. Um ruído agudo e doce corta o ar matinal da enfermaria.
            O bebê nascera.