segunda-feira, 21 de março de 2011

Gargalhadas e café expresso


            Encostado no balcão da lanchonete de costume, que ficava na calçada de frente para a saída lateral do Hospital, onde apreciava mais um delicioso pastel chinês que, na maioria das vezes, substituía o almoço ou, quem sabe, o jantar, o Doutor aplacava de leve a fome que parecia revirar as entranhas e colabar o estômago (se tal fosse possível), quando ouviu ao longe o som mais agradável de toda uma temporada de falta de nascimentos na enfermaria. Sim, por mais irritante que possa parecer para a maioria das pessoas, para o Doutor o choro de uma criança era quase uma ode poética, principalmente se proveniente de uma criança recém nata. Imaginar que há pelo menos nove meses passados aqueles poucos quilos cianóticos, cobertos de muco que choram e se contorcem à procura do calor do colo da mãe, retém reflexos primitivos, respiram e dormem eram apenas duas células de corpos diferentes que se uniram num acontecimento que tem tudo, absolutamente tudo, para dar errado, produzia-lhe um frio inexplicável na espinha. Ir além e pensar que ele mesmo fora um desses acontecimentos um dia era pensamento por demais perigoso para a quarta noite em claro num plantão na Pediatria.
O segundo som favorito do Doutor era este que ouvia na manhã cinzenta e congesta daquela chuva fina que molha pouco e incomoda demasiado. A gargalhada musical vinha do outro lado da calçada, leve e eficaz, direta e sincera como toda boa e bem dada gargalhada deveria ser. Como era rara uma daquelas! Enquanto virava a cabeça à procura do foco de emissão, lembrava da infância na casa da Tia, perto da praia, na época em que uma das poucas preocupações era evitar areia em locais impróprios e ficar o máximo de tempo possível no mar, jogando bola ou simplesmente deitado na areia olhando as nuvens e imaginando desenhos inimagináveis. A época em que quando ia se deitar à noite, a cama embaixo da janela estava fresca da maresia, enquanto o corpo quente devido à exposição ao sol diária ainda sentia o balanço do mar, embalando um sono profundo e despreocupado. A época em que era efetivamente feliz e não sabia. Na verdade, ainda era feliz, só tinha lapsos longos de memória, só isso... Em câmera lenta seu olhar, através da acomodação adequada do cristalino após ser corrigido sensivelmente pelas lentes arranhadas dos óculos de grau pendurados ao nariz, foca nitidamente o ser capaz de levá-lo e trazê-lo de volta das suas lembranças mais reconfortantes.
Ela estava sentada no chão, ao pé de uma rampinha que promove acesso de deficientes físicos, idosos, gestantes e médicos apressados ao Hospital. Folhas de papel espalhadas à volta, molhadas e sujas do lodo acumulado nas frestas das pedras portuguesas que adornam a calçada. Uma bolsa caindo do ombro babava uma série de outras bolsinhas coloridas, cada uma com uma diferente finalidade, mas  as perceptíveis eram a de higiene dental, absorventes íntimos, material de papelaria, dinheiro e provavelmente um estetoscópio. Transeuntes se aglomeram curiosos, um vendedor ambulante corre para levantá-la. Um copo descartável era amassado em sua mão que tentava inutilmente juntar as folhas, afastar o cabelo do rosto, abafar a risada, secar as lágrimas que teimavam a escorrer, talvez pela dor da queda, talvez pela graça da situação. A outra mão não sabia a qual das tantas mãos solícitas segurar enquanto tentava se levantar. Uma mancha amarelada seguia do bolso superior do jaleco até abaixo do inferior e, a julgar pela extensão, ele, sábio Doutor, exímio conhecedor da famosa bebida intitulada café, diria que nenhum mero gole foi tomado.
A graça e leveza e honestidade com que Ela se levantava, corava de vergonha, ria, ajeitava o cabelo, agradecia, pedia desculpas, colocava de volta um sapato, buscava reaver suas bolsinhas coloridas, empurrava os óculos de volta para o rosto, pegava as folhas que lhes eram entregues por pedestres, sacudia o jaleco molhado de café tudo ao mesmo tempo era venerável e digna da admiração estática que o Doutor se encontrava. Lábio entreaberto, sobrancelhas franzidas, lanche na mão e refresco na outra, cabeça levemente pendida para um lado. Aquela gargalhada...
A movimentação se dissipou, Ela sumiu calçada adentro quando o Doutor dera a última mordida no pastel, o lanche fora pago e o dia seguiu com nada mais de interessante ou nostálgico, além de uma fratura de tíbia e um pneumotórax que chegaram juntos vindos do mesmo jogo de futebol.
No vestiário, ao trocar de roupa, meteu a mão nos bolsos e encontrou mias uma vez o famigerado post-it amarelo com número de telefone.