segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Amigo

          Sentado no banco do ônibus, observada a cidade passar com a brisa rompendo narinas adentro sem pudor algum, trazendo com elas os gases tóxicos emanados dos escapamentos dos carros e chaminés que rodeavam a cidade. Quem ligava? A cidade tinha árvores suficientes para que o povo esquecesse que seus pulmões eram castigados desde a primeira inspiração dada no mundo. O Doutor tinha certeza de que ele era o único ser (humano, pelo menos) que parava para pensar no acúmulo de partículas negras se instalando preguiçosas nos fundos dos imaculados alvéolos pulmonares de crianças que brincam inocentes na pracinha.
            A cidade acordava preguiçosa em alguns rostos que subiam no coletivo, ainda esfregando os olhos. Alguns adolescentes que certamente tinham planos muito melhores na tarde anterior completavam deveres de casa às pressas, apoiando os cadernos nas mochilas assinadas por colegas. Mães puxavam seus filhos sonolentos pela calçada. Pessoas passeavam com cachorros. Uma manhã qualquer, sol encoberto, temperatura amena para o fim do ano, ligeiramente silenciosa para o horário... O homem que estava a sua frente dá uma cusparada para fora da janela, no momento em que um motociclista está costurando o trânsito, por sorte com o capacete.
            A já antiga notícia de jornal parece lhe esbofetear a cara mais uma vez. Um rapaz teria se envolvido em um fatal acidente de trânsito numa madrugada. Aparentemente perdera a direção da motocicleta, deixando uma marca vermelha de tinta na lataria de uma Kombi que vinha na direção contrária. Aparentemente teria desviado de um carro, cujo motorista estava bêbado. Foi uma nota pequena dentre as outras atrocidades noticiadas diariamente, entretanto, de suma particularidade.

            Seu Amigo, provavelmente o melhor Amigo que já fizera nos anos de estudo da faculdade, tinha conseguido arranjar um bico em um plantão de cirurgia geral durante o internato, no mesmo dia que ele, sexta-feira. Viam-se ritualisticamente nas manhãs seguintes ao plantão para rir, rememorar, trocar diagnósticos, falar sobre música, carros, viagens, mulheres... Sobre estas falavam desde os tempos das aulas de anatomia, quando ficavam de olho nas calouras da bancada 7 assistindo à aula de membro superior. Fora a primeira pessoa com quem falara na faculdade, durante o trote. Ambos com os cabelos cortados de forma aleatória, pintados de azul verde vermelho amarelo dos pés a cabeça, o nome da faculdade marcado na testa. Coletaram mais trocados do que qualquer um na turma e foram eleitos os calouros revelação da choppada do ano. O Amigo acompanhou os tempos difíceis da vida do presente Doutor, as duas provas finais, de farmacologia e sistema urinário, que teve que fazer; a mudança da Mãe; a despedida do Velho. O Doutor também acompanhou o Amigo por poucas e boas; brigas com as eternas namoradas; ajudou nas parcelas do pagamento da moto nova; estava presente durante os porres na madrugada. Eram os irmãos que ambos nunca tiveram. Fizeram viagens inesquecíveis. Sentiam-se apoiados um no outro, podendo sempre contar com a mão, apoio, jaleco, esteto, caderno, resumos um do outro. Dividiam perdas e provações, sonhos e conquistas. Um carinho fraterno que nunca tivera oportunidade de experimentar. Certo sábado, seu amigo não aparecera para o encontro matinal.

            A notícia de jornal apertava-lhe mais o coração. A fotografia mostrava a motocicleta vermelha contorcida, quase irreconhecível. A Kombi também já tinha visto dias melhores. No chão, espalhados pelo asfalto, estavam algumas apostilas e anotações. A nitidez da imagem permitia identificar um adesivo na lataria da motocicleta mostrando o caduceu, adornado com as iniciais da faculdade. A ambulância chegara tarde demais. Dois meses depois o Doutor recebia seu diploma. O nome concedido à turma foi uma homenagem sugerida por ele. Era o mínimo que poderia fazer. Mas nunca o suficiente.
            O ônibus era o único transporte que conseguia utilizar desde então.

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