quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Sangue, Bioética e Flatline



                 As luzes fluorescentes do corredor lhe ardiam as costas, as paredes e o teto pareciam se fechar ao seu redor, o chão ladrilhado bege media dez metros a mais do que de costume e seu estômago ainda não decidira se estava vazio, cheio ou ia lhe fazer a graça de devolver o rápido lanche que fizera sete horas antes. O peso dos ombros após esforço exultante finalmente se fizera sentir, uma vez que o flush de adrenalina tinha se passado. Procurando respirar pausadamente, em busca de devolver o tão precioso oxigênio de volta ao córtex e alinhar os pensamentos, traçava sua via crucis até a sala de espera da emergência. Repassava um guideline que ele mesmo inventara para tais momentos difíceis.

                O senhor de meia idade entrara carregado por sua esposa, seguidos de perto por uma jovem, mistura perfeita do casal. Hematêmese, severa, palidez cutâneo-mucosa, taquipneia, onde estava o esfigmomanômetro?!, temperatura não foi possível de ser aferida, maqueiro preso no elevador, Doutor chega apressado, equipe se apronta, síncope, acesso periférico encontrado, infusão, parada cardio respiratória, o Doutor sobe na maca para iniciar a massagem, o paciente precisava ser transferido... Em meio à inundação da Emergência, mãe e filha se abraçam, observando o homem da casa ser levado para longe dos seus olhos assustados. O Doutor viu-se na ansiedade da dupla, sabia como era estar naquela situação.

                As passadas pesadas refletiam seus pensamentos. A responsabilização do Médico com relação aos seus pacientes, seu bem-estar, seu diagnóstico, seu prognóstico, sua profilaxia, sua promoção de Saúde, sua terapia e recuperação é perfeitamente plausível.  Quando sem intercorrências. Entretanto, a valorização do erro, da perda, do engano, da morte é tão avassaladora, que os esforços anteriores geralmente são atirados ao lixo com desgosto, juntamente com os capotes e luvas ensangüentados, produzidos em tais situações. Era, pra ele, quase que doloroso perceber que, em um milisegundo, era requisitado a executar uma formulação matemática que abrangesse todas as conseqüências financeiras, éticas e morais, os danos, potenciais vítimas e opinião pública de um caso em questão e seguir com a melhor conduta. Melhor para quem?  Para ele, o mais importante era promover o melhor atendimento para seus pacientes, mas e para o algorítimo, isso era tudo?

                Agora se encontrava em cima da maca, do outro lado da cena, tendo a responsabilidade de trazer de volta à vida um marido, um pai, um filho, possivelmente um trabalhador, um amigo e um ser humano. O diagnóstico sombrio de sangramento sem controle não inibiam as massagens enérgicas, tão pouco suas ordens à equipe. Aprendera ao longo da formação que era preciso lutar até o fim, procurando oferecer a melhor conduta e o melhor tratamento possível ao paciente, desistir, certamente, não deveria ser uma opção. Os esforços se somavam, porém o sangue escorria, acessos venosos se perdiam, costelas eram fragilizadas e os sinais vitais desabavam em um precipício infinito. Era tempo de pesar o custo benefício da conduta e o Doutor nunca conseguira se acostumar.

                Não estava o Doutor ciente de todos os riscos e benefícios aos quais seu paciente, no momento, estava exposto? Sendo o resultado favorável, não importaria para o paciente e seus familiares as iminentes seqüelas da doença e do tratamento? Sendo negativo,  não seria ele, Doutor, o incapacitado? O que lhe incomodava mais era o fato de que, em todas as discussões bioéticas de condutas e tomadas de decisão, em nenhum momento ele mesmo tinha o direito de se preocupar com si. Seus sentimentos de impotência, de perda, de fragilidade. Afinal, ao mesmo tempo que avaliava os mais delicados detalhes dos reflexos de sua escolha final, tinha que aceitar que suas decisões prévias o fizeram chegar àquele ponto crítico. Tinha que admitir que, mesmo cogitando todas as possibilidades em sua cabeça, a resolução não dependia dele. A Ciência, em si, está indubitavelmente submetida a algo que a humanidade conhece bem: a vida e sua finitude. Cabia a ele como Médico aliviar o sofrimento dos que estavam à sua volta. Mas e o seu sofrimento, tinha vez?

                Trinta minutos de trabalho árduo.Trinta minutos de tentativa  impostos ao paciente. Trinta minutos de dor. Trinta minutos de discussão, questionamento e argumentação mental Trinta minutos que se transformaram em horas esperançosas na sala de espera. Um cansado movimento de decisão.  

                Agarrado à máscara cirúrgica, calças respingadas de sangue, sabia que o resultado do caso não devia lhe trazer culpa ou arrependimento. Sabia que ele, Doutor, nunca fora senhor do tempo, soberano sobre as enfermidades e suas conseqüências, mas sim, que estava submetido aos caprichos do corpo humano e seu refinado relógio biológico. Não podia deixar de corroer-se por ver a vida se esvair pelos dedos, por estar ali encarando os familiares, por ser ele o pivô de um sentimento indelével que ele muito bem conhecia, porém foi condicionado a suprimir...

                Com a certeza de que era o melhor a se fazer, o Doutor suspendeu a reanimação.
                Flatline.