segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Capítulo I

Beta hidróxibutirato desidrogenase!

NÃO!!! Ele acordara assustado ao ouvir tal palavrão. A última vez que tinha se deparado com tamanho infortúnio foi na época das aulas de bioquímica, ainda na faculdade, quando era obrigado a decorar e repetir exaustivamente ciclos e cadeias intrincadas de substâncias de nomes tão feios quanto este. A única diferença é que nos seus sonhos o tal beta hidroxialgumacoisa era um monstro terrível, todo verde e com imensos chifres fluorescentes que o perseguia em uma estrada de carbonos e hidrogênios onde as encruzilhadas eram feitas de grupamentos amino.
Realmente nada daquilo fazia sentido. Verificou as horas no rádio relógio que repousava sobre o criado e já passava das quatro da madrugada. Talvez estivesse só tenso com o concurso de residência que prestaria daqui a uns dias, ou cansado com os plantões e noites perdidas em alguns hospitais da cidade. A verdade é que cansado estava mesmo da vida.
Levantou-se ainda no escuro. Antes de deixar o quarto tateou por alguns instantes a maca na qual repousava em busca de seus óculos e seu esteto. Empurrou enfim a porta e deixou a sala.
Nada nesse novo ambiente parecia com aquele cubículo escuro e vazio que acabara de deixar. A luz o chicoteava por completo, deixando claros os vincos e amassados do seu jaleco branco. Seus olhos claros eram, às vezes, resistentes à luminosidade, o que fazia com que tivesse os olhos semicerrados quase todo o tempo. Tudo isso somado ao seu cabelo “bed style” e a barba sempre por fazer conferiam ao dr. um ar desajeitado, porém minimamente sexy.
“Mandaram me chamar?” ele perguntou na recepção, que é de onde vinham todos os chamados e alertas. “Sim”, respondeu uma senhora gorda e negra de aspecto jovial que costumava trabalhar ali todos os dias, tirando os sábados porque era adventista, pelos últimos 22 anos.

O caso não era nada fora do comum, não parecia um bichão de sete cabeças comparável às cadeias infindáveis de carbono com as quais sonhava deitado na maca desconfortável e sem regulagem. Um menino franzino havia engolido acidentalmente um objeto que, somente após três leves tentativas de desobstruir suas vias aéreas, verificou-se ser, aparentemente, uma parte de um inofensivo enfeite de Natal. Por dois segundos passaram por sua cabeça as funcionalidades de todos os ciclos responsáveis pela manutenção da energia corporal e o que a falta de oxigênio faria a todas as estruturas, cujos nomes eram grandes demais para se escrever em uma linha do seu antigo caderno da faculdade, que, muitas vezes, resumia-se a uma folha roubada de alguma menina que se sentava na primeira fileira. Definitivamente, nada agradável.
Tal corrente de pensamentos, felizmente, durou pouco o suficiente para não perder o sono ou aumentar sua taxa já elevada de adrenalina no sangue, mas foi longa o bastante para fazer crescer talvez um ou dois fiapos grisalhos a mais nas proximidades das têmporas. Nada agradável? Talvez.
Beth dizia sempre orar por suas olheiras nos sábados em que ia para a igreja adventista. Fazia isso desde a segunda noite em que ele passou pelo plantão da pediatria, cobrindo um ou outro amigo que ainda foi capaz de preservar algum tipo de convívio social durante os anos da faculdade, quando de tão cansado dormira de pé, encostado entre dois gabinetes onde guardavam EPIs e luvas de procedimento. Com um sorriso sincero e levemente empático da sempre solícita Beth, arrastou-se de volta para o quartinho, como um lagarto retorna para sua toca escura. Como fruta podre, descarregou todo o peso do corpo torneado e levemente corcunda, resultado da má alimentação, deslocamento de hospital em hospital e longos períodos de estudo, na maca dura e desconfortável. Apagou como alguém em preparação anestésica para uma eplenectomia: rápido e inocentemente.


(Este texto foi composto com a participação de D. Leal)

4 comentários:

  1. Poxa...
    Nem lembrava mto de como tinha ficado esse texto.
    Relendo agora eu vi que ficou "minimamente" agradável aos olhos! =)

    Bem vinda ao mundo dos bloggers!

    =)

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  2. Ótimo texto e ótima idéia a de blogar. O endereço já está salvo nos favoritos. Quero novidades sempre, rss.

    Bjs. Parabéns.

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  3. Ameeeeeeeeeeeeeiiii!
    Bem vindaaaa ao mundo dos blogs! ;D

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  4. Adoro quando eu leio uma coisa que eu não entendo completamente.

    E poxa, porque em vez de roubar ele não pede a folha pra garota?

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