terça-feira, 10 de maio de 2011

Cirurgia Absoluta e Clínica Soberana

             Goodman soltava bolhas apreensivas, observando o Doutor caminhar pela pequena sala entulhada de livros e material de estudo. O envelope nas mãos já se tornava úmido da sudorese nervosa que brotava das palmas lívidas e trêmulas. Acabara de chegar em casa após uma passada matutina na lavanderia do Chinês com sua trouxa de roupas limpas, mas ainda assim amarrotadas. A diarista passaria as roupas quando voltasse das férias, caso ele tivesse a decência de comprar uma tábua de passar roupas nova. O cactos no peitoril da janela mudara de conformação mais uma vez, assemelhando-se agora a um homenzinho dançarino com ambos os braços para cima. Há quanto tempo o Doutor não se via naquela posição.
                Todos os habitantes da casa pareciam tensos, curiosos para saber o conteúdo do envelope, mas ao mesmo tempo amedrontados demais, cansados demais para serem arrebatados por notícias, ruins ou boas. Estudara tanto, se esforçara tanto... Mas ao mesmo tempo nem tinha certeza se era esse o caminho correto a seguir, o desfecho certo na vida, a História Patológica Pregressa ideal para sua anamnese. A Grande Prova de Residência Médica era para os acadêmicos de Medicina como uma volta para o passado longínquo do Cursinho pré-vestibular. Ah se o Doutor soubesse como seriam os anos subseqüentes da festa que fizeram em casa quando foi aceito na faculdade. Teria aproveitado cada segundo possível da sua vida feliz, menos preocupado com as notas em matemática ou português. Agora sentia-se como um adolescente que procura seu nome na lista de aprovados no jornal.
                Nunca tivera tanta certeza do que escolher como especialidade. Começara pelo básico: sim, precisava escolher alguma delas, somente generalista não gostaria de ser. Não lembrava-se mais se tomara essa decisão lúcido e orientado ou ligeiramente direcionado pelos catedráticos professores que ainda se dispunham a ministrar as aulas e não mandar os assistentes. Desde cedo na faculdade os estudantes passam por um divisor de águas categórico e imutável, uma guerra Napoleônica ou melhor dizendo, Hipocrática entre duas grandes vertentes da Medicina: Clínica ou Cirurgia. Podia ter dúvidas a cerca da especialidade a seguir, claro, mas nunca da área. Ou eram cirurgiões ou eram clínicos e algo mais claro do que isso, somente coriza hialina. Por seis anos da sua vida, tentara não pensar muito sobre o assunto...
Nos anos em que rodava na enfermaria do Hospital da faculdade, era conhecido por todas as enfermeiras e pacientes, recebia bolo nos dias de visita das avós, mães e irmãs, afagos e abraços de todos. Nem ele mesmo compreendia de onde as pessoas percebiam tanto carisma, tanta vocação para ouvinte. Talvez porque passasse uma hora colhendo o histórico de um novo paciente, ou porque soubesse explicar com os detalhes suficientes para que um senhor idoso pudesse entender um determinado procedimento delicadíssimo ao qual seria submetido. Sempre se destacou nos procedimentos básicos de manejo com o paciente, ou melhor, com pessoas, fossem eles idosos, crianças, funcionários do hospital ou colegas.  Queria estar por perto, ouvir os desfechos, saber dos dias de alta. Visitava pacientes de enfermarias outras que não a sua específica, não necessariamente para auscultar um sopro em terceira bulha ou estertor sub-crepitante, tampouco avaliar a possível doença de Addison no leito 12... Esse seu lado também era percebido por alguns professores, mas nem sempre tão bem ressaltado. Muitas vezes era advertido de que, caso se importasse demais, perderia a imparcialidade.
               
Ao mesmo tempo, quando se despontava brilhantemente nas aulas de Anatomia, ganhava leves tapinhas do ombro do professor, devido às habilidades para dissecar quase que perfeitamente vasos e nervos miúdos dos membros superiores e inferiores. Habilidade essa que não se restringia ao Anatômico, mas era levada aos almoços em família, nos quais recebia uma porção de corações de galinha e abria-os perfeitamente para mostrar aos primos mais novos as valvas, artérias e cordas tendíneas. Lembrava de um deles em que, dissecando uma aorta, conseguira retirar um trombo que ocupava quase todo o calibre do vaso, sendo muito provavelmente a causa mortis do animal, não fosse o abate prematuro. Sempre fora dotado de habilidades manuais suficientes para fabricar seus próprios cartões de aniversário, cortar em linhas retas e promover suturas delicadas. Via uma certa beleza na Cirurgia, o ambiente asséptico, calmo e absolutamente controlado, com música ambiente e paciente em um raro momento de tranqüilidade.
                                Então tomara sua decisão, mas não seguiu a corrente desesperada de estudantes que terminam a faculdade e mergulham nos concursos de Residência. Com uma inspiração profunda e longo período de apneia, aceitou o trabalho no Plantão do Hospital Municipal e outro no Hospital Pediátrico enquanto estudava com calma para a grande prova. Decidiu-se por ele, não pelas insistências de professores, ou por olhadas maldosas de colegas ou por pedidos de pacientes. Decidiu-se por começar do começo. Decidiu-se por não ser imparcial.
                Com um movimento brusco, rasgou o envelope.