sábado, 25 de junho de 2011

Pinball, micoses e chopp

            A perna inquieta fazia toda a mesa chacoalhar, num movimento incessante e barulhento. As folhas, lápis, livros farfalhavam com o tremor nervoso do estudante curvado sobre a tabela de tempo de meia-vida dos antifúngicos menos hepatotóxicos. A maioria dos medicamentos causava os mesmos efeitos adversos que as provas da semana seguinte: náuseas, desconforto abdominal, vômitos e diarréia. E mesmo assim a concentração lhe escapava tão rapidamente quanto a glicose sérica sob um ataque de infusão insulínica. Alguns nomes de fungos tinham mais letras do que o alfabeto, sendo impronunciáveis, quanto mais memorizados para escrever na hora da prova. E as doses, vias de administração, indicações e contra-indicações batiam pelas sinapses a fora, como sádicas bolinhas de pinball, se jogando para fora do crânio pelos ouvidos.
                Já nem sentia o movimento do corpo, suas cutículas nem sequer serviam para a função de serem comidas. O dorso pendia para frente, anestesiado, e a cabeça parecia ter sido separada do pescoço, leve e nebulosa. Não distinguia mais seus ‘Ns’, ‘Ms’ e ‘Us’ das anotações em sala e as lâminas histológicas representadas no livro tinham semelhança com quadros abstratos, em que os artistas passavam por fazes: ora demasiado rosa, ora por demais roxas. O estômago não sabia mais reclamar a fome, aturdido com a miscelânea hormonal irrompendo pelo sangue... Seria fome...? Seriam náuseas...? Seria somente um vazio existencial...?
                O susto do toque estridente da campainha o tirou facilmente do caderno improvisado de travesseiro. Com o rosto ainda marcado pela mola de metal, viu o Amigo saltar sala adentro, surpreso por vê-lo naquelas condições deveras miseráveis: o Velho e a Mãe fora de casa, em visita à cidade natal; comida congelada na geladeira; cama, mesa, louça, roupas sujas... tudo esquecido durante aquela semana de provas. Suas anotações sendo encontradas até mesmo coladas na porta do banheiro, em frente ao vaso sanitário. Latas de energético, copos de suco, canecas para café se acumulavam aonde conseguissem se apoiar, cambaleando em quinas de mesas, prateleiras, bancadas de pia... onde quer que fosse levadas durante as caminhas de leitura. Caixas de lenço de papel vazias junto a remédios antialérgicos amontoavam-se próximo aos livros velhos, cuja poeira era maior inimiga do pobre estudante.
                Sem forças para tripudiar, sentiu o amigo o arrastar para o chuveiro, arrancando os resumos do caminho. Viu-se tomando um banho impecável, aparando a barba e arrumando-se com roupas novas, sem saber o motivo. Indagou com o olhar apático o Amigo, cujo hálito delatava já ter iniciado os trabalhos etílicos por conta própria, sorria e apressava-o com destreza habitual de quem está animado. “Ela vai levar uma amiga! Motivo suficiente pra você ir!!” Mesmo sem saber ao certo com quem havia sido arranjado ou o motivo da comemoração, subiu na moto do Amigo, rumo ao desconhecido e obscuro momento de diversão. A casa cheia fervilhava, o som era distinguível há metros da entrada, abalando as janelas vizinhas. Sobre as cabeças pairava a já conhecida fumaça que, misturando-se às luzes coloridas que piscavam no ritmo da música, dava um ar de descontrole ao ambiente. Na pista, mais perto das caixas de som, calouros e veteranos eram iguais. Igualmente felizes, igualmente etilizados, igualmente suados de tanto dançar. Aos poucos, o tremor da perna acostumou-se à batida e o arrastou para perto daquela massa pulsante de gente, enquanto o Amigo ficara para trás, junto do seu par. O chopp quente, o exagero de fumaça de cigarro, as maquiagens escorridas pelo rosto das meninas, a música desconhecida, tudo parecia incrivelmente brilhante e divertido, fazendo as ameaçadoras provas desaparecerem. Como chegou em casa é algo que preferia deixar a cargo da amnésia provocada pelo álcool. O sonho psicodélico da noite anterior dava lugar novamente à preocupação monstruosa de cavernas pulmonares e dermatofitoses. O relógio ao seu lado piscavam as vermelhas 15:00 da tarde de domingo, marcando a urgência de arrumar a casa antes do retorno dos seus verdadeiros donos, em duas horas, quando então seria impossibilitado de retomar o ritmo de estudo para ouvir fofocas contadas pela Mãe sobre a cidadezinha. Então seria a hora do jantar e comeria a primeira refeição decente na conta de uma semana e então seria a hora de repassar para o Velho um breve resumo da prova do dia seguinte. E então seria a hora de apelar para quem quer que estivesse ouvindo que as bolas de pinball fossem recolocadas no lugar ou que fosse cobrado, pelo menos, o que efetivamente sabia. E então seria a hora de acordar e correr para o auditório e fazer a prova. E então seria hora de aguardar ansioso pelo resultado.
           Recebeu feliz, anuviado, exausto, seu melhor resultado de Infectologia até então.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cirurgia Absoluta e Clínica Soberana

             Goodman soltava bolhas apreensivas, observando o Doutor caminhar pela pequena sala entulhada de livros e material de estudo. O envelope nas mãos já se tornava úmido da sudorese nervosa que brotava das palmas lívidas e trêmulas. Acabara de chegar em casa após uma passada matutina na lavanderia do Chinês com sua trouxa de roupas limpas, mas ainda assim amarrotadas. A diarista passaria as roupas quando voltasse das férias, caso ele tivesse a decência de comprar uma tábua de passar roupas nova. O cactos no peitoril da janela mudara de conformação mais uma vez, assemelhando-se agora a um homenzinho dançarino com ambos os braços para cima. Há quanto tempo o Doutor não se via naquela posição.
                Todos os habitantes da casa pareciam tensos, curiosos para saber o conteúdo do envelope, mas ao mesmo tempo amedrontados demais, cansados demais para serem arrebatados por notícias, ruins ou boas. Estudara tanto, se esforçara tanto... Mas ao mesmo tempo nem tinha certeza se era esse o caminho correto a seguir, o desfecho certo na vida, a História Patológica Pregressa ideal para sua anamnese. A Grande Prova de Residência Médica era para os acadêmicos de Medicina como uma volta para o passado longínquo do Cursinho pré-vestibular. Ah se o Doutor soubesse como seriam os anos subseqüentes da festa que fizeram em casa quando foi aceito na faculdade. Teria aproveitado cada segundo possível da sua vida feliz, menos preocupado com as notas em matemática ou português. Agora sentia-se como um adolescente que procura seu nome na lista de aprovados no jornal.
                Nunca tivera tanta certeza do que escolher como especialidade. Começara pelo básico: sim, precisava escolher alguma delas, somente generalista não gostaria de ser. Não lembrava-se mais se tomara essa decisão lúcido e orientado ou ligeiramente direcionado pelos catedráticos professores que ainda se dispunham a ministrar as aulas e não mandar os assistentes. Desde cedo na faculdade os estudantes passam por um divisor de águas categórico e imutável, uma guerra Napoleônica ou melhor dizendo, Hipocrática entre duas grandes vertentes da Medicina: Clínica ou Cirurgia. Podia ter dúvidas a cerca da especialidade a seguir, claro, mas nunca da área. Ou eram cirurgiões ou eram clínicos e algo mais claro do que isso, somente coriza hialina. Por seis anos da sua vida, tentara não pensar muito sobre o assunto...
Nos anos em que rodava na enfermaria do Hospital da faculdade, era conhecido por todas as enfermeiras e pacientes, recebia bolo nos dias de visita das avós, mães e irmãs, afagos e abraços de todos. Nem ele mesmo compreendia de onde as pessoas percebiam tanto carisma, tanta vocação para ouvinte. Talvez porque passasse uma hora colhendo o histórico de um novo paciente, ou porque soubesse explicar com os detalhes suficientes para que um senhor idoso pudesse entender um determinado procedimento delicadíssimo ao qual seria submetido. Sempre se destacou nos procedimentos básicos de manejo com o paciente, ou melhor, com pessoas, fossem eles idosos, crianças, funcionários do hospital ou colegas.  Queria estar por perto, ouvir os desfechos, saber dos dias de alta. Visitava pacientes de enfermarias outras que não a sua específica, não necessariamente para auscultar um sopro em terceira bulha ou estertor sub-crepitante, tampouco avaliar a possível doença de Addison no leito 12... Esse seu lado também era percebido por alguns professores, mas nem sempre tão bem ressaltado. Muitas vezes era advertido de que, caso se importasse demais, perderia a imparcialidade.
               
Ao mesmo tempo, quando se despontava brilhantemente nas aulas de Anatomia, ganhava leves tapinhas do ombro do professor, devido às habilidades para dissecar quase que perfeitamente vasos e nervos miúdos dos membros superiores e inferiores. Habilidade essa que não se restringia ao Anatômico, mas era levada aos almoços em família, nos quais recebia uma porção de corações de galinha e abria-os perfeitamente para mostrar aos primos mais novos as valvas, artérias e cordas tendíneas. Lembrava de um deles em que, dissecando uma aorta, conseguira retirar um trombo que ocupava quase todo o calibre do vaso, sendo muito provavelmente a causa mortis do animal, não fosse o abate prematuro. Sempre fora dotado de habilidades manuais suficientes para fabricar seus próprios cartões de aniversário, cortar em linhas retas e promover suturas delicadas. Via uma certa beleza na Cirurgia, o ambiente asséptico, calmo e absolutamente controlado, com música ambiente e paciente em um raro momento de tranqüilidade.
                                Então tomara sua decisão, mas não seguiu a corrente desesperada de estudantes que terminam a faculdade e mergulham nos concursos de Residência. Com uma inspiração profunda e longo período de apneia, aceitou o trabalho no Plantão do Hospital Municipal e outro no Hospital Pediátrico enquanto estudava com calma para a grande prova. Decidiu-se por ele, não pelas insistências de professores, ou por olhadas maldosas de colegas ou por pedidos de pacientes. Decidiu-se por começar do começo. Decidiu-se por não ser imparcial.
                Com um movimento brusco, rasgou o envelope.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Gargalhadas e café expresso


            Encostado no balcão da lanchonete de costume, que ficava na calçada de frente para a saída lateral do Hospital, onde apreciava mais um delicioso pastel chinês que, na maioria das vezes, substituía o almoço ou, quem sabe, o jantar, o Doutor aplacava de leve a fome que parecia revirar as entranhas e colabar o estômago (se tal fosse possível), quando ouviu ao longe o som mais agradável de toda uma temporada de falta de nascimentos na enfermaria. Sim, por mais irritante que possa parecer para a maioria das pessoas, para o Doutor o choro de uma criança era quase uma ode poética, principalmente se proveniente de uma criança recém nata. Imaginar que há pelo menos nove meses passados aqueles poucos quilos cianóticos, cobertos de muco que choram e se contorcem à procura do calor do colo da mãe, retém reflexos primitivos, respiram e dormem eram apenas duas células de corpos diferentes que se uniram num acontecimento que tem tudo, absolutamente tudo, para dar errado, produzia-lhe um frio inexplicável na espinha. Ir além e pensar que ele mesmo fora um desses acontecimentos um dia era pensamento por demais perigoso para a quarta noite em claro num plantão na Pediatria.
O segundo som favorito do Doutor era este que ouvia na manhã cinzenta e congesta daquela chuva fina que molha pouco e incomoda demasiado. A gargalhada musical vinha do outro lado da calçada, leve e eficaz, direta e sincera como toda boa e bem dada gargalhada deveria ser. Como era rara uma daquelas! Enquanto virava a cabeça à procura do foco de emissão, lembrava da infância na casa da Tia, perto da praia, na época em que uma das poucas preocupações era evitar areia em locais impróprios e ficar o máximo de tempo possível no mar, jogando bola ou simplesmente deitado na areia olhando as nuvens e imaginando desenhos inimagináveis. A época em que quando ia se deitar à noite, a cama embaixo da janela estava fresca da maresia, enquanto o corpo quente devido à exposição ao sol diária ainda sentia o balanço do mar, embalando um sono profundo e despreocupado. A época em que era efetivamente feliz e não sabia. Na verdade, ainda era feliz, só tinha lapsos longos de memória, só isso... Em câmera lenta seu olhar, através da acomodação adequada do cristalino após ser corrigido sensivelmente pelas lentes arranhadas dos óculos de grau pendurados ao nariz, foca nitidamente o ser capaz de levá-lo e trazê-lo de volta das suas lembranças mais reconfortantes.
Ela estava sentada no chão, ao pé de uma rampinha que promove acesso de deficientes físicos, idosos, gestantes e médicos apressados ao Hospital. Folhas de papel espalhadas à volta, molhadas e sujas do lodo acumulado nas frestas das pedras portuguesas que adornam a calçada. Uma bolsa caindo do ombro babava uma série de outras bolsinhas coloridas, cada uma com uma diferente finalidade, mas  as perceptíveis eram a de higiene dental, absorventes íntimos, material de papelaria, dinheiro e provavelmente um estetoscópio. Transeuntes se aglomeram curiosos, um vendedor ambulante corre para levantá-la. Um copo descartável era amassado em sua mão que tentava inutilmente juntar as folhas, afastar o cabelo do rosto, abafar a risada, secar as lágrimas que teimavam a escorrer, talvez pela dor da queda, talvez pela graça da situação. A outra mão não sabia a qual das tantas mãos solícitas segurar enquanto tentava se levantar. Uma mancha amarelada seguia do bolso superior do jaleco até abaixo do inferior e, a julgar pela extensão, ele, sábio Doutor, exímio conhecedor da famosa bebida intitulada café, diria que nenhum mero gole foi tomado.
A graça e leveza e honestidade com que Ela se levantava, corava de vergonha, ria, ajeitava o cabelo, agradecia, pedia desculpas, colocava de volta um sapato, buscava reaver suas bolsinhas coloridas, empurrava os óculos de volta para o rosto, pegava as folhas que lhes eram entregues por pedestres, sacudia o jaleco molhado de café tudo ao mesmo tempo era venerável e digna da admiração estática que o Doutor se encontrava. Lábio entreaberto, sobrancelhas franzidas, lanche na mão e refresco na outra, cabeça levemente pendida para um lado. Aquela gargalhada...
A movimentação se dissipou, Ela sumiu calçada adentro quando o Doutor dera a última mordida no pastel, o lanche fora pago e o dia seguiu com nada mais de interessante ou nostálgico, além de uma fratura de tíbia e um pneumotórax que chegaram juntos vindos do mesmo jogo de futebol.
No vestiário, ao trocar de roupa, meteu a mão nos bolsos e encontrou mias uma vez o famigerado post-it amarelo com número de telefone.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Anamnese, Rosário e Flor de Laranjeira


      Lavando-se na pia comum do corredor, ouvira fofocas da chegada do novo grupo de internos, todos obviamente perdidos, segurando presunçosamente seus estetoscópios e pranchetas, prontos para trabalhar na ala de Obstetrícia e Neonatologia. Pobres coitados, pensava o Doutor. Ouviu o grupo se aproximando, curioso à procura do anfiteatro para a primeira sessão clínica do ano, admirando até mesmo as infiltrações do teto e rachaduras de onde se despregava o reboco. Não que para alunos do sexto ano isso fosse novidade. Mas o privilégio de terem conseguido passar por todos esses anos numa faculdade com o maior índice de suicídios do País lhes enchia de orgulho e tudo parecia como se fosse a primeira vez. O primeiro doente, a primeira ausculta pulmonar de um enfisematoso, a primeira anamnese.
Desta o Doutor nunca esquecera. Um senhor idoso da enfermaria de Pneumologia sentado em posição de ortopneia no leito 4. Um senhor idoso de bigodes amarelados pela nicotina companheira de 64 anos, tantos quantos fora casado com sua querida e amada, cuja foto ficava na cabeceira do leito, adornada por um rosário trazido do Vaticano pelo neto. Nascera na cidade em que iria morrer e em 84 anos de existência nunca teria sentido o gosto de álcool, salvo em uma virada de ano em que os amigos lhe pregaram uma peça. Queixa principal sempre foi a boa e velha “falta de ar e dor no peito”. Fora isso, viroses comuns da infância, sendo sarampo a que mais se lembrava. Sua mãe fora lavadeira toda a vida e seu pai marceneiro, vindo do estrangeiro, daí teria tirados os olhos claros. Sem irmãos tivera que tomar conta da mãe doente, aquela doença do açúcar, depois que o pai falecera do coração. A cada sentença, o senhor do leito 4 inspirava rápido duas ou três vezes, expirando com dificuldade. Afogava-se em si mesmo, em suas próprias lembranças e, ocasionalmente, suas próprias lágrimas. O Doutor, ainda Acadêmico na época, anotava tudo com destreza de escrivão antigo, ora mirando o cilindro de oxigênio, ora checando o próprio correr do soro, porém, emendava um assunto em um próximo e mais outro e outro, acabou conhecendo décadas de mudança na cidade e no país. Ficara horas conversando com o senhor do leito 4 mas nunca lembrara seu nome. Somente no dia após a entrega, quando fora mostrar a boa nota recebida e as congratulações do professor acerca de sua muito bem colhida história familiar, encontrara o leito vazio, a cabeceira sem o porta retratos, sem cilindro de oxigênio, sem paciente. Pendurado na grade da cama estava o rosário. A enfermeira encontrou o Acadêmico sentado na cama com o rosário nas mãos, a anamnese jogada para um lado, murmurando as iniciais ‘P.L.M.’, também gravados no rosário. Nunca esquecera sua primeira anamnese, porque esta também fora sua primeira morte. E esta nunca se pode esquecer.
Lembrava de tudo isso durante os poucos segundos em que terminava de lavar as mãos e ouvir os animados Internos caminhando rumo à sessão clínica. De repente estacou. Reconhecera-a. Não a voz, nem o rosto, que, aliás, só vira de relance pelo espelho do lavatório, mas um aroma de flor de laranjeira enchia a sala de emergência, transformando o ambiente artificial em uma janela campestre no coração do Hospital. O doce perfume se intensificou em suas narinas, atingindo em cheio os bulbos olfativos, fazendo o córtex reconhecer o aroma da laranjeira em flor e associá-lo a um sorriso e um número de telefone.
Era Ela.