quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Post-its, Meias e Prontuários


            Finalmente seu plantão havia chegado ao fim. O único problema é que não estava completamente acordado para curtir os 90 minutos que durava o seu percurso de trem até a outra ponta da cidade para começar mais uma jornada de 24 horas no hospital municipal. Recolheu suas poucas coisas do armário no vestiário reservado aos médicos e ia saindo quando a recepcionista Beth, a única pessoa nessa emergência  que parecia ter nome, o chamou, dali mesmo do balcão, sem a necessidade do tão usado microfone nos avisos e alertas: “Dr.! Dr.! Recado para o Sr.” Ainda de costas pensou em fingir que não ouviu e passar por aquelas portas sem interromper seu percurso. Respirou fundo e decidiu voltar.
            Não ficou surpreso. Afinal, quase ninguém o ligava mesmo. Seu celular já havia praticamente atrofiado o sistema elétrico responsável pela emissão de sons. Só o relógio funcionava. O post-it amarelo tinha o mesmo número que aparecia em todos os post-its amarelos que a sorridente Beth o entregava semanalmente desde que começara a trabalhar ali. Era de uma garota que o conheceu na última festa na qual foi: a sua própria formatura. Jamais retornou para aquele número e o recado tomou o destino de todos os outros anteriores: o cesto de lixo.

 
            A viagem de trem não lhe era estranha. Desde os tempos da faculdade a fazia incessantemente. Desde os tempos em que se sentia todo poderoso, carregando seus livros para um fim de semana cheio de estudos, acompanhado do famigerado contrabando de ossos, cujas menores e aparentemente insignificantes reentrâncias deveriam ser carinhosamente analisadas e memorizadas para que se obtenha uma prova prática tranqüila e, por que não, bem sucedida.
            Sentado em seu canto no fundo do vagão praticamente vazio, observava as pessoas humildes que eram dependentes daquele transporte durante o início da madrugada. O último trem era quase sempre o mesmo: o cheiro dos freios queimando os trilhos, o piscar das lâmpadas estremecidas pelos sobes e desces do caminho, o ranger das peças antigas e enferrujadas onde as pessoas se penduram para não cair. Os passageiros do último trem eram quase sempre os mesmos: rostos vazios, olhos cansados, colunas arqueadas, roupas amarrotadas e puídas. Havia de tudo ali. Enfermeiras, pedreiros, faxineiras. Dentistas, estudantes noturnos, manicures, vendedores ambulantes, policiais e ele. Médico formado, não há tanto tempo quanto gostaria ou quanto sua fisionomia solitária poderia parecer.
            Desceu na estação de costume, perto de uma lavanderia que ficava aberta 24h, todos os dias da semana, comandada por um Chinês que viera quando criança e até agora não sabia pronunciar a língua da sua nova terra natal propriamente. O interessante, no entanto, era que conseguia sustentar uma conversa longa e animada durante o tempo em que a roupa era lavada e seca e, quanto mais tarde fosse, mais interessante a conversa parecia ficar. Eram seus locais mais frequentados, as lojas 24h. Antes, aparecia assiduamente em bares e restaurantes noite adentro, com a galera, com a família, com alguém que lhe parecesse especial na época. Agora dava o ar da graça em lojas de conveniências, supermercados e na lavanderia do Chinês, mais por necessidade de horários do que por afetividade local, mesmo que fosse extremamente reconfortante jogar o saco de pano de roupa suja que trazia de duas em duas semanas na máquina de lavar, sentar em uma cadeira de ferro dobrável e assistir comodamente ao rodar das roupas que se tornavam vagarosamente brancas mais uma vez. De alguma forma o permitia pensar e elocubrar sobre tratamentos possíveis, diagnósticos diferenciais e que nova cor poderia ser para a cortina do banheiro, para que não se assemelhasse ao hospital.
            Munido de alguns trocados, realizou o costumeiro ritual de lavagem. A vantagem da sua profissão era que não precisava sempre separar em duas máquinas o branco do colorido, lembrando sempre que as poucas camisas coloridas que tinha eram tão claras de usada que lavava todas juntas sem se preocupar. O Chinês também tinha uma fórmula secreta que mantinha o branco tão branco quanto a farda de alguma alta patente da Marinha. Realmente, algo a se orgulhar. Mas não se orgulhava. Não muito.
            Ao remexer seus bolsos à procura de alguma altamente necessária e esquecida quantidade de dinheiro, ateve a mão em algo no bolso de trás da segunda calça que tinha além da que estava vestido. O toque do papel na ponta dos dedos o fez estremecer, pois esperava o frio de uma moeda. Ao ver o já conhecido número de telefone da tão insistente garota, escrito pela carinhosa Beth no post-it amarelo e guardado displicentemente no bolso não se surpreendeu nem se alegrou. Simplesmente concluiu sua tarefa, atirou o papel no cesto de lixo e sentou para o entretenimento. Desviou o olhar para o Gato gordo, preto e branco que dormia profundamente encostado em uma secadora, aproveitando o calor da máquina e embalado pelo Chinês que murmurava uma canção da sua infância querida que os anos não trariam nunca mais. O letreiro néon da lavanderia 24h piscava azul e vermelho sem parar enquanto suas roupas rodavam diante dele, criando uma espécie de hipnose curiosa: camisa, cueca, meia, short, pacientes, hospital, meia, prontuário, camisa, telefone da garota, meia, cueca, diagnóstico, meia prontuário meia meia trabalho telefone camisa short cueca pacientes camisa telefone meia short... O torpor da madrugada tomou conta do seu corpo intensamente e somente a campainha da máquina o fez acordar, minutos depois, avisando que seu árduo trabalho havia terminado. 

 (Este texto foi composto com a participação de D. Leal)

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