quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Gênesis


Fora acordado por um colega que pouco via, pois diferente dele, este lidava com o outro extremo, com o início da Vida. Ele considerava uma especialidade alegre, não estava acostumado a esse tipo de reação dos pacientes, esse movimento ilógico e sobrenatural que é a geração de um ser dentro de outro. Patinava pelo corredor parcialmente escuro devido ao adiantado da madrugada seguindo o colega Obstetra que o enchia de informações codificadas sobre a paciente, o pai, a anestesia, o pré-natal e o desfalque da equipe, motivo principal de ter sido tirado de mais um desconfortável pestanejar na primeira maca da emergência.
            Mal teve tempo de se lavar, quanto mais calçar as luvas. Chegou no ápice de uma contração e vislumbrou a teatral cena apocalíptica, caótica, prolixa e absolutamente bela comum a qualquer parto vaginal. O Obstetra dirige, sentado em um banquinho de três pernas, guiando o bebê pelo seu trajeto obscuro; outra Obstetra pressionando a barriga por cima, sendo o ponto para que a parturiente não esquecesse seu papel de respirar e fazer força da maneira correta na mesa; o Pediatra aguardando sua vez na coxia, agarrando-se a um pano verde para aquecê-lo e posteriormente secar a criança; duas Enfermeiras dando suporte técnico para as pernas exaustas por estarem em posição deveras desconfortável; o Anestesista assegurando pelo acesso venoso o refrigério parcial da parturiente; a Mãe, atriz central da trama, aclamada e rodeada por todos que tentavam motivá-la a continuar; e finalmente o Pai.
            Enquanto assegurava o lugar de uma das Enfermeiras, atracando-se à perna da parturiente, o Doutor pôs-se a observar a figura do Pai, seu personagem favorito do balé da sala de parto. Um mero coadjuvante em meio a tanto tumulto, a aflição e impotência estampados no rosto suado e cansado.  De tempos em tempos, enquanto fazia força e sofria as dores da esposa, como todos os outros, buscava pela máquina fotográfica no bolso do pijama cirúrgico, querendo registrar o momento em que sua vida mudaria completamente: o nascimento do primeiro filho. O Pai confuso com tantos nomes e gritos e ordens para sua esposa, de pé, ao lado da cabeceira, mãos trêmulas segurando a máquina. A informação de complicações circulava à boca pequeníssima em meio a equipe técnica do espetáculo e os olhares dos Médicos se encontravam rapidamente em cumplicidade, para cada um ter certeza do que deveria fazer.
            À beira da exaustão, a Mãe já não sabia mais a que familiar ou santo recorrer dentre os monólogos sofrido de dor e força. Estava cumprindo primorosamente seu papel de guerreira e mulher determinada há horas, horas demais na sua concepção. O apoio veio da forma mais adequado possível. O Pai, em uma epifania do real significado de ser Homem e Marido agarra a mão da Esposa, lhe beija a testa e diz que a ama, o quanto estava orgulhoso dela e como estava sendo corajosa naquele momento.
            O tempo parou por um ou dois segundos talvez, dando licença para o carinho daquele casal, para um momento de vislumbre de pupilas dilatadas de dois amantes que estavam prestes a segurar o resultado palpável, frágil e rosado de seu casamento. E ali, sem capote, sem luvas, afastando a perna parcialmente anestesiada do caminho, ele, Médico formado, Doutor, sábio Doutor, compartilhou uma lágrima absorvida pela máscara cirúrgica que escondia o sorriso mais franco que sorrira desde sua formatura. Ali suspirou fundo e sentiu uma bruma leve de felicidade e realização pela profissão que escolhera, sentimento raríssimo durante a vida acadêmica e noites insones. Um espirro forte e súbito de sangue mancha-lhe a lente do óculos, rosto, máscara e pijama cirúrgico, esbofeteando-o para fora de seu enlevo profissional. Um ruído agudo e doce corta o ar matinal da enfermaria.
            O bebê nascera.

Um comentário:

  1. Uau! Pensei quea escritora seria sufocada pela medicina. Que belíssima surpresa a minha.
    Amei o texto!

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    Feliz 2011!!!!!!!!!!!

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