sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Espera


          Aproveitou o breve momento em casa para pendurar a cortina nova. O motivo um tanto infantil da cortina, adornada de peixinhos coloridos, patos de borracha e bolhas de sabão fora escolhido a dedo. Não agüentava mais cores pastéis dos hospitais: beges, verdes bebê, azuis lavanda... Até os campos cirúrgicos eram verdes, dependendo da verba empregada no equipamento do centro cirúrgico, azuis descartáveis. Algumas enfermeiras buscavam uma forma de neutralizar o já tão neutro ambiente, principalmente as do hospital pediátrico. Usavam toucas coloridas, aventais com bordados de personagens de desenhos animados... Inclusive, a cortina se assemelhava muito a uma touca que já tinha visto rodar pelo CTI Neonatal.
            O banho breve seguiu-se de uma rápida dúvida sobre fazer ou não a barba. Decidiu-se por tê-la esquecido e procurou qualquer camisa passada que estivesse no armário. Não se lembrava da última vez que comprara roupas para si ou para qualquer outra pessoa. Sentou-se na beira da cama feita, saudosa de seu dono para calçar os sapatos, buscou pela pasta, adicionou uma muda de camisa, pegou o pijama cirúrgico para o plantão da noite, o esteto, duas apostilas do curso para terminar os capítulos para a grande prova e saiu. Goodman o viu voltar afobado, logo após ter batido a porta, passando a mão pelos cabelos, agarrando a carteira que tinha deixado displicentemente sobre a mesinha, metê-la no bolso e bater novamente a porta. Para o peixe restavam algumas migalhas de pão boiando na água do aquário.
            Encostado no poste na rua, aguardava o ônibus que o levaria a terminal ferroviária da cidade. Rotineiramente encostava-se ao mesmo poste. Com a cabeça cambaleando ainda de sono, os olhos ainda numa bruma, como se fosse um recém nato que acabara de sair das entranhas da mãe para o claro e frio ambiente da sala de parto era ele ao sair da cama. O enlameado dos olhos pelo menos o permitia distinguir a figurinha esquálida e já muito conhecida que vinha arrastando seu carrinho de compras de lona verde e branco, geralmente vazio. O mesmo senhor lhe fazia todos os dias a mesma indagação, como se nunca o tivesse visto antes em sua vida. O mesmo chapéu cor de berinjela, meio caído sobre um olho, tapando-lhe a calva cultivada por anos de existência. Os óculos de lentes grossas e esverdeadas nas bordas pelo uso fitavam-lhe toda a santa e enevoada manhã, escondendo-lhe os olhos adornados pelo característico halo leitoso de catarata: “É ruim esperar, não é?”
            As palavras lhe martelavam a mente e o peito, fazendo-o sentir uma pressão na caixa torácica que não sentia por qualquer motivo. Mas tais palavras eram pesadas de uma forma inexplicável e toda vez que eram pronunciadas por aqueles lábios outrora vívidos parecia-lhe que o tempo parava para que o Doutor pudesse reaprender a respirar. De quê sabia aquele senhor? Como poderia saber? E o que esperava tanto...? Nem o próprio Doutor sabia dizer ou esconder. Sabia somente que o tal senhor encurvado parecia transpor toda a sua mente, fitando-lhe como se tivesse um aparelho de ressonância magnética acoplado aos óculos, vendo-o por completo. Engolia em seco, concordava com a cabeça, mesmo sem saber pelo que esperava tanto e mirava as rachaduras do chão novamente. O senhor ia embora mais uma vez, mas a dúvida permanecia em seus ouvidos, martelando-os, pesando-lhe o ar, como se esse agora fosse denso, quase palpável. “É ruim esperar...”

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