quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Adendo

            Não era sempre que fatos da vida o emocionavam. Porém, diferente do raciocínio lógico da maioria das pessoas, ele não era calculista, frio e sem coração. Ele era Médico. Seu papel era cuidar, confortar, tratar e não ser tratado, confortado, cuidado. Aprendera na faculdade a aceitar sua condição desde as primeiras aulas de fisiopatologia no segundo ano, onde eram mostradas as imagens de muitos pacientes agonizantes, em fase terminal, vísceras expostas, pés diabéticos, gripes, pulmões congestos, corações infartados. Figuras muitas vezes chocantes para as jovens retinas imaculadas dos acadêmicos que eram severamente repreendidos pelos brilhantes mestres, cada vez que ameaçavam fazer alguma careta de asco ou pena. “Ora, vocês não são Doutores?”
            Chegando no hospital as imagens nem se faziam notar praticamente. A diferença é que eram acompanhadas de sons, cheiros, texturas e, o pior de tudo, eram acompanhadas de pessoas reais. Doentes. Reabilitados. Pais e mães. Idosos. Bebês. Jovens. Planos. Futuros. Sonhos. Vidas, afinal de contas. A diferença é que as imagens, os corpos doentes, eram acompanhadas agora de almas. E isso era algo que tinham que aprender a lidar, de qualquer maneira. “Afinal, vocês não são Doutores?”
            Dessa forma, não era sempre que os fatos da Vida o emocionavam. Não porque não os sentisse, mas porque os suprimia, os controlava. Houve momentos em que umidecia a barra da manga do jaleco num movimento rápido para afastar as lágrimas ao observar um paciente seu, revendo mentalmente todo o prognóstico desfavorável, todas as reações químicas que aconteceriam, enquanto o corpo definha e se prepara para morrer. Uma conseqüência absolutamente natural da Vida, ele reconhecia. Afinal, para morrer, basta-se viver. E os tantos pacientes que lhe puxavam o tapete eram justamente aqueles que entendiam perfeitamente tal frase de efeito e se deixavam partir como se concluíssem a mais incrível e difícil das jornadas: placidamente, acalmando a si, aos familiares e ao Doutor, sábio Doutor, que no fim do dia, sentado na lavanderia ou num meio de transporte público, assoava de leve o nariz e respirava fundo, com a mesma sensação do dever cumprido.
            Mas eram raros os que faziam bonito. Lugar comum era compreender a situação como inevitável, mas não como uma linha de chegada. Simplesmente como um ponto final de um monólogo por demais longo e solitário. Havia os que partiam sozinhos, os que partiam amargurados, os que partiam culpados, os que partiam com medo, os que partiam despreparados para partir. Sempre haverá. Estes não provocavam tristeza, tão pouco comoção. O sentimento era um concordar que seu trabalho havia sido feito e admitir que a partir desse limite, sua profissão de nada mais servia. 
           Não era uma pessoa fria. Era Médico.

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