Enquanto caminhava na rua, ouviu
um carro freando bruscamente, seguido de gritos curtos, pedidos de socorro,
pessoas correndo. Na rua estava um carro com o pára-choque retorcido, o
motorista assustado, no asfalto a trajetória brusca, promovida pela perda de
controle do veículo na tentativa de desviar de um cachorro que se soltara da
coleira, estava queimada pelos pneus em alta velocidade. Na calçada, um senhor
de meia idade, de bermuda e camiseta ainda segurava parte da coleira partida na
mão enquanto jazia semi inconsciente na mesma posição em que fora lançado pelo
impacto. O Doutor correu.
Sentado numa cadeira do CTI,
observava, ao seu lado, o Paciente em coma. A família acabara de ir embora,
frustrada por não saber o que estava acontecendo com seu irmão, pai, avô.
Frustrada com uma situação de ausência repentina, de um corte de laços sem
explicação. Como podia lá estar o corpo funcionante, sem o espírito? O próprio
Doutor se espantava com o estado de coma. Sem previsões, sem respostas, sem
controle dele. Sentado na cadeira só lhe restava esperar. Esperar e pensar. Lembrou-se
de ter ouvido um dia um comentário despreocupado de um conhecido, sobre profissões
e ocupações na vida, após terem assistido a um filme numa mostra cultural: “Como
são felizes as pessoas que trabalham com isso. Não lidam com dores e problemas.”
Estranho achar que é preciso
ficar longe das dores, das preocupações, das doenças e da morte para ser feliz.
O Doutor indignou-se à tempo, mas pouco pode fazer, pois o conhecido foi-se e a
conversa se perdeu num momento curto de conversa à mesa. Entretanto, sentado
naquela cadeira, o argumento veio à tona e o cérebro fervilhava de questionamentos
e discussões. Seriam felizes aqueles que pensavam e escreviam romances,
pintavam lindas obras, produziam filmes, desenhavam roupas? Seriam infelizes
aqueles que atendiam em bancos, faziam contas em empresas, administravam bens
em escritórios? Seria infeliz ele mesmo, Doutor, atendendo sua própria
necessidade de cuidar do próximo?
Engana-se – divaga ele para o
doente – que é preciso formar-se filósofo para pensar. Todos tem dentro de si
capacidade para filosofar, bastam ser feitas as perguntas certas. Para
filosofar, basta-se pensar. O Doutor sabia por quê não filosofava tanto quanto
costumava fazer em mesas de bar, com amigos próximos. Pensar é inevitável,
porém o muito pensar, a extravagância de pensamento incomoda e incomoda muito. Invariavelmente
chegam aquelas dúvidas sem respostas feitas de si mesmo para si próprio e a
busca por esclarecimento do beco sem saída criado pela própria mente, por
muito, ocupa literalmente um espaço às vezes necessário para a vida. Sim, pois
não se tem o mundo somente nas idéias, a praticidade é algo relevante. O Doutor
se espantava quando tais sábios filósofos apregoam a cruz à rotina e à vivência
cotidiana. Ora, não vivem eles mesmos do material, do real? Não têm todos
corpo, fome, sono, desejos? É preciso sim dar espaço o pensamento à praticidade
do dia a dia.
No caso do Doutor, o dia a dia
eram a Medicina. Enquanto amigos formavam-se filósofos, literários, músicos,
escritores, atores, artistas. Formava-se Médico. Enquanto viajavam, escreviam,
dançavam, conheciam o estrangeiro. Trabalhava, estudava, conhecia dores,
conhecia doenças. Porém nunca antes o Doutor sentiu-se diferente, melhor, pior,
mais inteligente, menos afortunado da sua escolha profissional. Somente quando
foi chamado de triste, percebeu o que sua condição parecia às vistas do mundo à
fora. E não concordava de maneira nenhuma.
Ele não se sentia mais
inteligente que a população geral. Também nunca achou que sua profissão era
mais importante que as outras, o que seriam seus longos plantões por vezes
ociosos, sem bons filmes para distrair a cabeça? Não se sentia inferior por não
ter conhecido tanto o estrangeiro e tão novo quanto colegas que se formaram em
outras áreas. Nunca deixou de se interessar pela arte e pela música. Tampouco
se entristeceu por ainda não ter constituído família. A filosofia do Doutor era
a mesma que movia todos os meios artísticos: pessoas. Lidar com o ser humano
era considerado por ele também uma obra de arte, pois o indivíduo é único, com
um raciocínio único, um imenso universo de idéias, fé, esperança, amor, ódio,
tristeza e energia imaterial contido num complexo mecanismo de carne e osso.
Absolutamente fascinante. Não se pode ficar indiferente ao corpo e seu
funcionamento e era por isso que acreditava que todos que tinha contato na
época da graduação se interessavam tanto em saber sobre as aulas de anatomia. A
curiosidade humana faz de cada um pensador.
A sensação de um toque frio em
seu braço o fez desviar o olhar. O Paciente acordara, esticara a mão, abrira os
olhos e, cansado, sorriu por detrás da máscara de oxigênio, pois reconheceu o
primeiro rosto que viu, quando foi levantado da calçada dias antes. Aquele
homem agora estava livre para ler, apreciar pinturas, ir ao cinema, comer,
dançar, cantar, pensar. Estava livre para viver. Naquele momento, não existia
poeta, ator, cantor, diretor, filósofo, escritor, não existia ninguém presenciando
tão suprema satisfação e alegria. Ninguém no mundo era tão realizado com um
simples abrir de olhos... Feliz, o Doutor sorriu de volta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário