terça-feira, 29 de maio de 2012

Ao Abrir Dos Olhos


Enquanto caminhava na rua, ouviu um carro freando bruscamente, seguido de gritos curtos, pedidos de socorro, pessoas correndo. Na rua estava um carro com o pára-choque retorcido, o motorista assustado, no asfalto a trajetória brusca, promovida pela perda de controle do veículo na tentativa de desviar de um cachorro que se soltara da coleira, estava queimada pelos pneus em alta velocidade. Na calçada, um senhor de meia idade, de bermuda e camiseta ainda segurava parte da coleira partida na mão enquanto jazia semi inconsciente na mesma posição em que fora lançado pelo impacto. O Doutor correu.
Sentado numa cadeira do CTI, observava, ao seu lado, o Paciente em coma. A família acabara de ir embora, frustrada por não saber o que estava acontecendo com seu irmão, pai, avô. Frustrada com uma situação de ausência repentina, de um corte de laços sem explicação. Como podia lá estar o corpo funcionante, sem o espírito? O próprio Doutor se espantava com o estado de coma. Sem previsões, sem respostas, sem controle dele. Sentado na cadeira só lhe restava esperar. Esperar e pensar. Lembrou-se de ter ouvido um dia um comentário despreocupado de um conhecido, sobre profissões e ocupações na vida, após terem assistido a um filme numa mostra cultural: “Como são felizes as pessoas que trabalham com isso. Não lidam com dores e problemas.”
Estranho achar que é preciso ficar longe das dores, das preocupações, das doenças e da morte para ser feliz. O Doutor indignou-se à tempo, mas pouco pode fazer, pois o conhecido foi-se e a conversa se perdeu num momento curto de conversa à mesa. Entretanto, sentado naquela cadeira, o argumento veio à tona e o cérebro fervilhava de questionamentos e discussões. Seriam felizes aqueles que pensavam e escreviam romances, pintavam lindas obras, produziam filmes, desenhavam roupas? Seriam infelizes aqueles que atendiam em bancos, faziam contas em empresas, administravam bens em escritórios? Seria infeliz ele mesmo, Doutor, atendendo sua própria necessidade de cuidar do próximo?
Engana-se – divaga ele para o doente – que é preciso formar-se filósofo para pensar. Todos tem dentro de si capacidade para filosofar, bastam ser feitas as perguntas certas. Para filosofar, basta-se pensar. O Doutor sabia por quê não filosofava tanto quanto costumava fazer em mesas de bar, com amigos próximos. Pensar é inevitável, porém o muito pensar, a extravagância de pensamento incomoda e incomoda muito. Invariavelmente chegam aquelas dúvidas sem respostas feitas de si mesmo para si próprio e a busca por esclarecimento do beco sem saída criado pela própria mente, por muito, ocupa literalmente um espaço às vezes necessário para a vida. Sim, pois não se tem o mundo somente nas idéias, a praticidade é algo relevante. O Doutor se espantava quando tais sábios filósofos apregoam a cruz à rotina e à vivência cotidiana. Ora, não vivem eles mesmos do material, do real? Não têm todos corpo, fome, sono, desejos? É preciso sim dar espaço o pensamento à praticidade do dia a dia.
No caso do Doutor, o dia a dia eram a Medicina. Enquanto amigos formavam-se filósofos, literários, músicos, escritores, atores, artistas. Formava-se Médico. Enquanto viajavam, escreviam, dançavam, conheciam o estrangeiro. Trabalhava, estudava, conhecia dores, conhecia doenças. Porém nunca antes o Doutor sentiu-se diferente, melhor, pior, mais inteligente, menos afortunado da sua escolha profissional. Somente quando foi chamado de triste, percebeu o que sua condição parecia às vistas do mundo à fora. E não concordava de maneira nenhuma.
Ele não se sentia mais inteligente que a população geral. Também nunca achou que sua profissão era mais importante que as outras, o que seriam seus longos plantões por vezes ociosos, sem bons filmes para distrair a cabeça? Não se sentia inferior por não ter conhecido tanto o estrangeiro e tão novo quanto colegas que se formaram em outras áreas. Nunca deixou de se interessar pela arte e pela música. Tampouco se entristeceu por ainda não ter constituído família. A filosofia do Doutor era a mesma que movia todos os meios artísticos: pessoas. Lidar com o ser humano era considerado por ele também uma obra de arte, pois o indivíduo é único, com um raciocínio único, um imenso universo de idéias, fé, esperança, amor, ódio, tristeza e energia imaterial contido num complexo mecanismo de carne e osso. Absolutamente fascinante. Não se pode ficar indiferente ao corpo e seu funcionamento e era por isso que acreditava que todos que tinha contato na época da graduação se interessavam tanto em saber sobre as aulas de anatomia. A curiosidade humana faz de cada um pensador.
A sensação de um toque frio em seu braço o fez desviar o olhar. O Paciente acordara, esticara a mão, abrira os olhos e, cansado, sorriu por detrás da máscara de oxigênio, pois reconheceu o primeiro rosto que viu, quando foi levantado da calçada dias antes. Aquele homem agora estava livre para ler, apreciar pinturas, ir ao cinema, comer, dançar, cantar, pensar. Estava livre para viver. Naquele momento, não existia poeta, ator, cantor, diretor, filósofo, escritor, não existia ninguém presenciando tão suprema satisfação e alegria. Ninguém no mundo era tão realizado com um simples abrir de olhos... Feliz, o Doutor sorriu de volta.

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